sexta-feira, 6 de maio de 2011

Tô chegando!

Quase dois meses se passaram desde a minha chegada no Rio e agora tenho a possibilidade de visitar a minha família em Pernambuco. Não pude fazer isso na Semana Santa, mas compensarei um pouquinho nestes cinco dias que virão, aproveitando a comemoração do Dia das Mães.

A ida também possui um outro propósito: tenho uma audiência marcada no Juizado Especial Cível de Olinda (o popular Pequenas Causas) contra a Tambaú por ter quase ingerido ano passado um caco de vidro encontrado dentro de um dos famosos tabletes de goiabada comercializados pela empresa. Depois de eu ser considerado "equivocado" pelo Serviço de Controle de Qualidade da fábrica (que me disse por telefone sem nem ter visto o vidro que era apenas um "açúcar cristalizado" - como se eu não fosse capaz de discernir açúcar de vidro...), resolvi ajuizar uma ação por danos morais. Não pelo dinheiro, mas pela atenção que a empresa deve não só com relação à produção de seus produtos, mas também aos seus consumidores. A audiência foi marcada, há quase um ano, antes mesmo de me inscrever na seleção do doutorado. Como calhou de ser marcada para 10 de maio, um dia após a comemoração das Mães, foi ótimo para unir o útil ao agradável.

Nessa visita repleta de saudades - das refeições em volta da mesa com a família, das cervejas e cafés com os amigos, das brincadeiras com carrinhos, Playmobils & Cia com o meu sobrinho e das estripulias com Zuca (o meu gato) -, mais uma vez uma música na cabeça. Tô voltando, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, na voz de Simone. É uma das primeiras canções que me lembro de escutar na antiga radiola de casa quando era criança por intermédio de meus pais, que adoravam ouvir a baiana no início da sua carreira.

Pode ir armando o coreto
E preparando aquele feijão preto
Eu tô voltando
Põe meia dúzia de Brahma pra gelar
Muda a roupa de cama
Eu tô voltando



Como a letra fala de um cara que está distante e diz para a mulher ir se preparando, pois ele está voltando para casa, então achei que poderia ter a ver comigo. Digo poderia porque a música é considerada um dos hinos da anistia de 1979, quando os brasileiros exilados que cometeram crimes políticos foram perdoados pelo governo militar e tiveram a possibilidade de retornar para o seu País. Como não sou exilado muito menos anistiado, resolvi então fuçar a internet para saber mais sobre Tô voltando e poder identificar algo comigo. Para a minha satisfação, descobri que a música, a princípio, não foi composta pensando nessa questão política. Na verdade, a canção teve como mote o cansaço de Tapajós após mais de um mês de turnê pelo Nordeste e a saudade de sua casa, no Rio.

Pelo fato de a música ter sido gravada por Simone pouco antes do retorno dos exilados, possivelmente a sociedade usou o tema para torná-lo trilha da anistia por ter uma correlação forte com o retorno deles ao Brasil. E aí é a mídia (especialmente a televisão) aproveitou aquele negócio para compor as suas imagens, popularizando ainda mais a canção. O que corrobora com a ideia de que os propósitos de um sujeito ou de um grupo de sujeitos - sejam quais forem - podem tomar um outro rumo, às vezes completamente diferente, quando circulam no meio social. Viva à linguagem e as suas múltiplas possibilidades!!

Satisfeito com a minha descoberta - que pode ser conferida por vocês no livro História das minhas canções (escrito pelo próprio Paulo César Pinheiro e lançado no ano passado) - finalizo este post com o vídeo da Simone no musical Grandes nomes, da TV Globo, em março de 1980, em que ela canta Tô voltando e um trechinho de Começar de novo, da dupla Ivan Lins e Vitor Martins. De quebra, a história de Pinheiro sobre a canção. Agora, posso cantá-la mais tranquilo, com a licença dos poetas. Gente, Tô voltando!! 


  


Maurício (Tapajós)... me ligou pra falar sobre uma idéia que tivera no caminho de volta. Cansado da tensão de palco (sem o hábito de cantar pra o público) e de tanta farra, bateu nele, já no finalzinho, uma saudade imensa de casa, da mulher, dos filhos, do Leblon, do Rio. E de Tapajós pra Tapajós ele dizia, às vésperas do retorno:
- Nem acredito que eu tô voltando...
E esse mote não o abandonou mais. Só podia dar samba... Com o violão na mão e o fone preso entre o ombro e a orelha cantarolou pra mim rascunho da melodia em que se repetia o "tô voltando".
- Quê que você acha, parceiro?
- Acho ótimo, gordo. Tô indo pra aí. Ainda agüentas maia um uísque?
Passamos o resto do dia dando a forma à composição. Na manhã seguinte, já em meu escritório, fui burilando a letra. Era simples e popular a canção e os versos foram fluindo. Eu, que já passara tanto por isso, tantas as viagens que fizera, enormes as saudades de casa, sabia bem do assunto que devia abordar. O papo era recorrente à nossa profissão. Toda a classe artística sentia profundamente essa ânsia de regresso depois de cada temporada. E todos queriam as mesmas coisas que eu rabiscava agora naquele samba. Ficou lindo o que a gente fez, e cheio de empatia. Era cantar uma vez e na segunda todos acompanhavam. Virava logo coro. Fácil de decorar. Senti imediatamente cheiro de sucesso. Simone estava escolhendo repertório para seu disco anual. Mostramos pra baiana. Ela veio que veio:
- Esse é meu!
Foi pro estúdio e arrebentou. Era 1979, e o samba ganhou o Brasil. Só dava ele nas rádios, "Estourou no Nordeste!" era a expressão bem-humorada que se usava na época, para designar a música que ganhava as paradas nacionalmente.
Agora vocês vejam como a arte tem seus mistérios... Pouco tempo depois, estava eu vendo o Jornal Nacional da TV Globo cujo tema central era o dia do retorno dos exilados políticos ao nosso país, tendo sido conquistado, com muita luta doa que ficaram encarando o regime militar, a anistia ampla, geral e irrestrita, quando, pra minha surpresa, no avião lotado por nossos companheiros, entre entrevistas e choros ao vivo, entoou-se, numa só voz, o "Tô voltando". A cena foi uma pancada no meu coração. A emoção tomou conta de mim e as lágrimas correram no meu rosto. Minha voz embargou. Os pelos eriçaram. Estufavam as veias e os nervos retesavam. Tive que respirar fundo e sair da frente da tevê pra não enfartar. A música tinha tomado outra conotação a partir dali. Virara o hino dos exilados. E é assim que é vista até hoje, pra meu regozijo. E é assim que pensam que ela foi feita, pra minha satisfação. O que mostra que o destino das canções não está em nossas mãos. Elas são o que elas quiserem ser, acima dos motivos por que foram feitas. Que bom que ela tenha virado o que virou. Ergo um brinde a isso. Sempre.
[PINHEIRO, P. C. Histórias das minhas canções. São Paulo: Leya Brasil, 2010]