sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Viol(ares)

Eu não ando só
Só ando em boa companhia
Com meu violão
Minha canção e a poesia
 [ Trecho da canção Para viver um grande amorde Toquinho e Vinicius de Moraes,
gravada pela dupla em 1971 no LP "São demais os perigos desta vida" (RGE) e regravada em 1979 no LP "10 anos de Toquinho e Vinicius" (Polygram-atual Universal Music) ]


"O instante existe e a vida está completa", disse certa vez a voz lírica. Após noites e dias atravessados no vento, passos, ficos. Outros Oceanos. E aí, sem mais nem menos, o som e a asa ritmada chegam de outras terras para dizer daquele instante vital. As cordas e sua velha acústica tipicamente conhecidas. Reencontro bom. E a satisfação de rever um velho amigo tão desejado. Que um dia estarei mudo, sabe-se disso. O texto já nos confirmou. Mas até lá o sangue continua firme. Cheio de noites e dias de desmoronamentos, edificações, permanências e de desfazeres, daqueles coisas fugidias que, por vezes, alegram, por vezes entristecem, por vezes ficam, por vezes passam, portantos sãos.

Neste jogo de palavras e ideias, a subversão com a obra poética da jovem carioca tem uma intenção, assim como o seu Motivo. Uma costura sutil com os ditos e os ainda não-ditos deste blog, afinal o tempo é contínuo intervalo de retomadas e moças construções. E nada melhor para tornar conveniente uma razão própria do discurso, seja ele qual for. Neste instante específico, instaura-se o resgate de canções para dotar os ar de novos ares e a viola de novos violares. Depois do "mais nada", o violão e a voz. Até o Moonlight Serenade:


Elizeth Cardoso e Raphael Rabello (1ª parte)

Elizeth Cardoso e Raphael Rabello (2ª parte)     

Elizeth Cardoso e Raphael Rabello (3ª parte)

Espetáculo gravado pela TVE-Brasil em fevereiro de 1990
no Teatro João Caetano dentro do Projeto Seis e Meia-Rio de Janeiro
e veiculado após a morte da cantora Elizeth Cardoso, ocorrida em maio do mesmo ano 


PS: Este post vai para Ângela e Raphael Pinho. A eles, todas as violas.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

A morte por dengue e a corresponsabilidade na mídia

Aproveito a apresentação recente de um trabalho meu no 9º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), ocorrido aqui no Rio de Janeiro, para escrever o comentário desta semana sobre o forte apelo que a morte por dengue tem na mídia. Na verdade, doenças infecciosas de uma maneira geral chamam a atenção dos veículos de comunicação por representarem risco para as coletividades e estarem atrelados a uma causalidade específica, neste caso a infecção por vírus e bactérias.

Dentro dos critérios de noticiabilidade, a morte é simbólica pela imprevisibilidade e a atualidade do acontecimento, especialmente, se levarmos em conta os critérios que definem a relevância de determinado fato para se transformar em notícia. Na dengue, poderíamos acrescentar também a quantidade de pessoas e lugares envolvidos, a proximidade geográfica e o peso, sobretudo em situações de epidemia, quando a doença costuma se disseminar para um maior número de pessoas. levando a ocorrência de casos e mortes.


Um dos cartazes da campanha de combate à dengue de 2009 do Ministério da Saúde


Como risco em potencial, a epidemia traz consigo o medo, levando o poder público a enfatizar o discurso do combate; uma forma de conscientizar a população sobre o controle e a prevenção contra a proliferação do agente causador da doença, o mosquito Aedes aegypti. Nas coberturas jornalísticas sobre a dengue, esse tipo de discurso reforça a corresponsabilidade, delegando para o cidadão parte de suas obrigações. É evidente que o Estado não deve ficar só na adoção de medidas de prevenção.

No entanto, é preciso haver uma melhor adequação da postura do Estado a fim de não culpabilizar única e exclusivamente o cidadão pela situação epidemiológica de determinado local. Infelizmente, isso vem sendo observado com cada vez mais frequência nas falas do poder público e no próprio noticiário, deixando de lado outras questões macro, como o meio ambiente e as condições socioeconômicas, sobre as quais o Estado tem maior ingerência.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Memórias e saudades do Recife em carnis valles

As reflexões de hoje são livres poéticas e musicais. Um tanto nostálgicas, é verdade. Têm a ver com as lembranças e as imagens que guardamos especialmente dentro de nós a partir das experiências de vida vividas. Dos lugares, dos cheiros, dos "causos" e das pessoas que encontramos ao longo da trilha. Podem ser memórias bem particulares ou então memórias mais coletivas. Mas evidentemente memórias que marcam particularmente o indivíduo.

Fico aqui com o pensamento da autora Ecléa Bosi, que buscou desvendar em sua obra as narrativas dos velhos, que costumam guardar no tempo a testemunha viva do passado na "substância mesma da sua vida", e como a memória vai se formando a partir dessas lembranças. Uma reconstrução que recompõe no espírito o tempo.


- Caminhando pelas ruas antigas, ele cantarola versos do pernambucano Antônio Maria. Versos de saudade do cotidiano de outrora que fizeram - e fazem - certamente história. Versos de um frevo dolente que batem fundo no coração.




Ai, ai, saudade
Saudade tão grande
Saudade que eu sinto
Do Clube das Pás, do Vassouras
Passistas traçando tesouras
Nas ruas repletas de lá
Batidas de bumbo 
São maracatus retardados
Que voltam pra casa cansados
Com seus estandartes no ar
[ Frevo nº 2 do Recife, canção de Antônio Maria composta na década de 50 e resgatada por Maria Bethânia, numa gravação de 1969, ainda no começo da carreira dela ]


O cotidiano, neste caso, tem a ver com a carnis valles, mais precisamente com as brincadeiras do carnaval, uma festa milenar que foi significando e se ressignificando entre diversas culturas na busca por festejar os prazeres da carne. Poderia ser um outro cotidiano. Mas, como o acontecimento se singulariza conforme a força do fato ocorrido, o Carnaval acaba por ser único no mundo das lembranças pela quebra das regras sociais, permitida comumente nos dias de folia, tornando-o digno de história. Eis porque tão único.


- E eis porque, ausente no espaço, o tempo olha-o com curiosidade, buscando o mesmo amparo na ausência, tornando-os mais próximos que antes.


Tempos vivos de memória, que, como diz ainda Ecléa Bosi, "aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora". Memória evocação de vivências. "Enquanto evoca ele está vivendo atualmente e com uma intensidade nova a sua experiência". Memória que conserva o espírito e aquilo que esse espírito faz de si mesmo. Mais do que apenas reviver imagens do passado.


- Desse encontro entre tempo e espaço, ele vai construindo a memória da sua vida, com sons e pensamentos que se compõem, decompõem e recompõem. E aí vai começando a compreender o sentido da saudade na memória ao som de outro frevo longínquo, desta vez do carioca Edu Lobo. Uma canção inspirada no saudoso Antônio Maria durante um inverno brabo em Paris de 1966 e cheia de "flashes e saudades das coisas do Recife", nos tempos em que Edu passava as férias escolares nas casas dos tios em Pernambuco




  Hoje não tem dança
Não tem mais menina de trança
Nem cheiro de lança no ar
Hoje não tem frevo
Tem gente que passa com medo
E na praça ninguém pra cantar
Me lembro tanto
E é tão grande a saudade
Que até parece verdade
Que o tempo ainda pode voltar
[ No Cordão da Saideira, música composta e gravada por Edu Lobo em 1967 e regravada pelo MPB4 em 1968 ]

Embora pareça "falta de", em meio a perdas de coisas já passadas, a saudade dialoga com a memória num ponto de encontro com o futuro. É a comparação entre o passado e o presente que permite ao sujeito ter um grau de satisfação, seja maior ou menor do que já foi e ainda é. Considerando o carnaval um conteúdo socialmente compartilhado, aproveito os escritos de Adriano do Nascimento e Paulo Menandro, professores de Psicologia Social da Universidade Federal do Espírito Santo (da mesma área de Ecléa Bosi), para concordar com o fato de que o saudoso funciona como "articulador de determinado discurso, e não como uma simples adjetivação possível desse mesmo discurso".

Seria o saudoso, então, um dos fios a revelar algo ainda mais profundo que um mero devir. É certo que ele não volta. Porém, reencontra permanentemente em nós nos objetos que nos rodeiam, e não apenas fortemente na velhice, mas nas várias épocas e contextos da vida. Paisagens sonoras de festas e acordes de carnavais e infância, da vida banalmente cotidiana, das sociabilidades que evocam afetos no adulto e no idoso.


- Hoje, a memória não se estabiliza mais na espacialidade das coletividades como antes. Então, ele meio que se perde. E desconfia. E busca uma aproximação metafórica para constituir um novo apoio para essa memória. E as memórias dele em meio a saudades.


As we grow older
The world becomes stranger,
The pattern more complicated
Of dead and living.
Not the intense moment
Isolated, with no before and after,
But a lifetime burning in every moment
And not the lifetime of one man only
But of old stones that can not be deciphrered.
[ Trecho de East Coker, poema de T. S. Eliot publicado em 1940 e que compõe um poema maior intitulado "Four Quartets" ]


Referências bibliográficas

BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 15 ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2009[1979].
BOSI, E. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. 2 ed., São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
NASCIMENTO, A. R. A.; MENANDRO, P. R. M. Memória social e saudade: especificidades e possibilidades de articulação na análise psicossocial de recordações. Memorandum. Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP, n. 8, abr. 2005. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/artigo01.pdf>. Acesso em: 13 out. 2011.
NOGUEIRA JR., A. Projeto releituras. Disponível em: <http://www.releituras.com/antoniomaria_bio.asp>. Acesso em: 14 out. 2011.
SITE OFICIAL EDU LOBO. Disponível em: <http://www.edulobo.com.br/site/>. Acesso em: 14 out. 2011.
WIKIPÉDIA. Desenvolvido pela Wikimedia Foundation. Apresenta conteúdo enciclopédico. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Carnaval>. Acesso em: 14 out. 2011.

        

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

No tempo em que...

Vez por outra, sempre me vem à cabeça o verbo "parecer" como constitutivo da nossa sociedade, especialmente se pensarmos no fenômeno da medicalização. Já disse a médica e historiadora das ciências francesa Anne Marie Moulin: "O exibicionismo da doença não é mais admissível, reduzido pelo ideal de decência. O corpo é o lugar onde a pessoa deve esforçar-se para parecer que vai bem de saúde”.

É justamente nesse “parecer” que a medicalização se insere como um fenômeno intrínseco à contemporaneidade. A partir do momento em que a saúde se torna mais um “dever” que um “direito” de estar bem, o consumo de medicamentos e a normatização do cuidado com a saúde caracterizam-se como aspectos da medicalização, que não só faz dos remédios artigos de necessidade básica do homem, mas também cria padrões “saudáveis” em prol de uma vida teoricamente “livre” dos riscos que tanto afligem o ser humano.

Bem, não quero escrever muito esta semana. Medicalização terá um post à parte. Por ora, trago uma canção do mestre Gilberto Gil que fala de um assunto aparentemente sem sentido, mas que, a meu ver, tem total sentido com o que escrevo: a aceitação calma e tranquila da morte. Nada mais simples e difícil ao mesmo tempo para uma sociedade que deseja cada vez mais e a todo custo a vida eterna. Sem querer parecer mórbido, eu os convido a escutar a canção composta pelo Gil em meados da década de 70 e a buscar refletir sobre a beleza dos versos no contexto da saúde-doença, sabendo que a morte é algo que também faz parte da vida. Então, que saibamos amar a morte na mesma medida em que buscamos amar a vida, sem parecer absolutamente nada. Apenas ser e estar...


Se a morte faz parte da vida
E se vale a pena viver
Então morrer vale a pena
Se a gente teve o tempo para crescer

Crescer para viver de fato
O ato de amar e sofrer
Se a gente teve esse tempo
Então vale a pena morrer
[Então vale a pena, música composta por Gilberto Gil e gravada pela cantora Simone em 1978 no seu LP "Cigarra" (gravadora EMI-Odeon)]




sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O status do rosto na doença

A reflexão desta semana surgiu de um detalhe banal. No finalzinho da reportagem de capa da revista Veja sobre o câncer do ator global Reynaldo Gianecchini (edição 2235 - ano 44 - nº 38), o texto fez questão de ressaltar que o artista, mesmo de cabeça raspada propositalmente (antecipando os efeitos da quimioterapia), ainda continuava com a beleza intacta. Entre parênteses, a frase funcionou como um comentário dentro do próprio texto, uma espécie de texto paralelo. Achei pitoresco e, por isso mesmo, decidi analisar esse fato à luz da compreensão cultural que temos a respeito de doença.

Eis o trecho da reportagem:

Câncer do ator Reynaldo Gianecchini é capa de Veja


"Na quinta-feira passada, o ator apareceu pela primeira vez desde a alta hospitalar. Gianecchini passeou com a ex-mulher, a atriz Marília Gabriela, pelas ruas do bairro paulistano dos Jardins. No rosto, o sorriso aberto e a simpatia de sempre. Exibia a cabeça raspada, antecipando um dos efeitos externos da quimioterapia. A imagem do ator (sim, ele continua muito bonito) era de otimismo, confiança e serenidade"
[VEJA - No espírito da cura - edição 2235, ano 44, nº 38, 21 set 2011]



Jornalisticamente (e por que não dizer também culturalmente?), a referência à beleza do ator tem um sentido de ser. Conhecido como um dos galãs mais jovens da televisão brasileira, Gianecchini trabalha em cima da sua imagem pública, tanto a do corpo malhado quanto a do rosto bonito, dignos de alçá-lo à condição de símbolo sexual. Sendo assim, essa manutenção da imagem lhe é bastante cara; uma moeda de troca que vale dinheiro e confere status de celebridade a ele. Não seria de se espantar o fato de a Veja enfatizar aos leitores que ele continua "muito bonito", especialmente às fãs que o veneram e o desejam.

Imediamente eu me lembrei da escritora, ativista e ensaísta americana Susan Sontag (1933-2004). Nas suas análises sobre as metáforas e interpretações sobre as doenças na nossa sociedade, ela considerou o rosto como uma parte privilegiada do corpo, importante para constatação da "beleza ou da ruína física" de um indivíduo. Para tanto, ela tomou como referência as imagens dos santos cristãos em que a expressão do martírio do corpo não condizia com a aparência do rosto. Para Sontag, havia um abismo surpreendente entre os dois, já que o rosto muitas vezes demonstrava não sofrer diante das atrocidades sofridas pelo corpo. "O próprio conceito de pessoa, de dignidade, depende da separação entre rosto e corpo, da possibilidade de que o rosto esteja isento - ou que ele próprio se isente - do que está acontecendo com o corpo", avaliou a escritora. 

Sabemos que nem todas as doenças provocam o mesmo sentimento diante dos efeitos sobre o rosto e o corpo. Os males do coração e a gripe, exemplificou Susan Sontag, não causam terror profundo nas pessoas por não danificarem o rosto. Na avaliação dela, as doenças mais temidas são aquelas que, de certa maneira, "animalizam" o doente (o "rosto leonino" do leproso - ou, como preferem as autoridades públicas brasileiras numa assepsia sui generis mundialmente,- do hanseniano) ou que conotam putrefação (a exemplo da sífilis ou da própria Aids no início da epidemia, quando o tratamento ainda não dava conta de proteger o organismo dos pacientes à ação do HIV).  

Câncer de mama influenciou obra de Susan Sontag
"`Por trás de alguns dos juízos morais feitos em relação às doenças, encontram-se juízos estéticos a respeito do belo e do feio, do limpo e do sujo, do conhecido e do estranho ou insólito. [...] Mais importante do que a intensidade do desfiguramento é ele refletir um processo subjacente e progressivo de dissolução da pessoa. A varíola também desfigura; mas as marcas que ficam não pioram. Pelo contrário: são justamente as marcas do sobrevivente. Já as marcas no rosto do leproso, do sifilítico, do aidético assinalam uma mutação, uma dissolução progressiva; algo orgânico."
Susan Sontag no livro Aids e suas metáforas (São Paulo: Companhia das Letras, p. 49, 1989)



Evidentemente, é preciso considerar o contexto em que a análise da Sontag foi feita. Fim dos anos 80, em pleno auge da Aids no mundo. O aparecimento dessa "nova"  doença sexualmente transmissível fez o mundo reviver o medo da desfiguração do corpo e do rosto, assim como havia ocorrido com a lepra e a sífilis em séculos anteriores, só que desta vez sob holofotes midiáticos. Semelhante às antigas pestes do passado, a Aids era interpretada como sinal de castigo divino, ressuscitando a intolerância e o preconceito, além de revelar publicamente a imagem negativa do doente, que se consumia em direção à morte inevitável, pondo em xeque o aparente controle que parecia haver sobre as doenças infecciosas.

Num contraponto à imagem positiva e bela do Gianecchini careca, podemos lembrar da imagem negativa e "em decomposição" do compositor e cantor Cazuza (1958-1990) estampada na capa da mesma Veja pouco antes de morrer. Em 24 de abril de 1989, o semanário estampava a fotografia do roqueiro com um semblante magro e coloração de pele diferente da normal, possivelmente consequência dos efeitos da Aids e da medicação utilizada na época para controlar a doença. Um exemplo público em que se via/lia o drama pessoal de um artista de renome e a visão do processo de adoecimento, da transfiguração explícita do rosto e do organismo como um todo e da luta contra a morte.

Drama da Aids em Cazuza é capa de Veja em 1989 
Embora guardadas as diferenças entre o câncer e a Aids ontem e hoje, os discursos produzidos pela imprensa revelam a importância dada ainda hoje ao rosto. Os exemplos de Gianecchini e Cazuza em Veja são exemplares nesse sentido. Na verdade, o que está por trás da preocupação com o rosto e com a beleza em si é o medo da morte. A doença significaria uma ameaça à vida. No caso do câncer, mesmo com todo o avanço da medicina, o temor ainda é visivelmente concreto, apesar de numa escala menor, se compararmos com a situação da doença no passado. Diferentemente da tuberculose, que trazia consigo uma ideia de lirismo e refinamento (a poesia romântica do século XIX está aí para provar), o câncer é visto, muitas vezes, como um mal potencialmente doloroso e, por isso mesmo, temível.


Na reportagem sobre o câncer de Gianecchini, a Veja também fala do ator e modelo galês radicado na Austrália Andy Whitfield (1972-2011), que faleceu dias atrás, em 11 de setembro, em decorrência do mesmo grupo de tumores que acomete o artista brasileiro, um linfoma não Hodgkin T que ataca o sistema linfático. Neste momento, os holofotes da imprensa para o assunto seriam mais que pertinentes, dada a atualidade da morte. Por isso mesmo, o comentário à beleza "intacta" do Gianecchini torna-se mais compreensível. A meu ver, o rosto significaria metaforicamente o locus de resistência pública do ator na luta contra o câncer, sempre pensando na velha concepção de embate entre o indivíduo contra a doença "inimiga" que o aflige. Uma força estética que representaria, mais profundamente, uma experiência histórica e filosófica do homem enquanto ser no mundo. 

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Comunicar para amamentar

Nesta sexta 9 de setembro, proferi uma palestra sobre a importância da comunicação para a proteção, apoio e promoção do aleitamento materno. Organizado pela Sociedade Pernambucana de Pediatria, o evento ocorreu no auditório Alice Figueira, que fica no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), no Recife. Foi uma oportunidade interessante de discutir com profissionais de saúde de diversas formações sobre a inserção da comunicação no que diz respeito ao aleitamento materno.

Não temos como negar o papel da comunicação. Na nossa vida, somos permeados por ela, já que envolve a troca de informações através de sistemas simbólicos. Formas de comunicação existem várias. Mas procurei me deter numa concepção bastante cara de interlocução e compartilhamento de sentidos e ideias. E por que essa e não outra(s)? Porque geralmente somos tentados a pensar na comunicação de forma essencialmente transferencial na qual um emissor que detém o conhecimento atua ativamente transmitindo uma mensagem através de um canal para um receptor muitas vezes passivo, espécie de "tabula rasa", que absorve e digere a informação sem qualquer criticidade.

Evidentemente, essa visão é equivocada, embora ainda esteja em voga e seja defendida por muitos. Independentemente da classe social ou do contexto em que vivemos, cada um de nós possui seus saberes, todos importantes para compreensão do mundo que nos cerca. E, na comunicação, esses saberes entram em negociação. Para incentivar o aleitamento, a proposta da Aliança Mundial em Ação para a Amamentação (WABA) para a campanha deste ano é pensar a comunicação como mais uma dimensão do processo que envolve tempo (da gravidez ao desmame) e lugar (local onde as gestantes, parturientes e seus familiares circulam, como casa, comunidade, posto de saúde etc). Nesse sentido, a comunicação funcionaria como promotora de mais interação e participação na multiplicação de informações, difundindo-as e trocando-as para além de nossas fronteiras a fim de buscarmos diálogo e transformarmos a palavra efetivamente em ação.


Comunicação como interlocução e compartilhamento de sentidos e ideias

Engraçado porque nos dias de hoje somos bombardeados de informações o tempo todo do que fazer ou não fazer para a nossa saúde. Entretanto, nem sempre essa informação se converte em atitude. Ou seja, nem sempre as pessoas mudam seus hábitos simplesmente por ter mais informação. No caso da amamentação, a tarefa parece um tanto difícil, já que o mundo atual "gira" de outra maneira, impondo rotinas e práticas de vida às vezes contrárias ao que se apregoa como as ideais. Muitas vezes, somos tentados a enfatizar apenas as vantagens do leite materno, deixando de lado as dificuldades, muitas vezes bem comuns, especialmente para as mamães de primeira viagem. Não que os benefícios não tenham de ser destacados. Não é isso. Mas é preciso equilibrar as informações, buscando discutir aquilo que ocorre no cotidiano das mulheres e o que pode ser feito desde o período de gestação para  garantir uma amamentação mais tranquila e, se possível, livre de problemas, por meio do que costuma ocorrer no dia a dia com as mães que amamentam.

Embora a WABA tenha ressaltado a comunicação na rede como forma de trabalhar o aleitamento, as conexões podem se dar fora da internet também, já que muitos no Brasil não têm acesso a ela. Levar em conta a realidade local de onde se pretende comunicar é fundamental e ponto primeiro, a fim de que as questões sejam discutidas a partir das situações vivenciadas dentro, e não fora desse lugar. Estabelecer uma interlocução é outro aspecto importante, buscando um diálogo para se discutir sobre a amamentação. De acordo com os Objetivos do Milênio, estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2000 com base nos maiores problemas mundiais, a amamentação poderia ser inserida em, pelo menos, quatro das oito metas fixadas. Dentre elas:

  • Acabar com a fome e a miséria;
  • Igualidade entre os sexos e valorização da mulher;
  • Reduzir a mortalidade infantil;
  • Melhorar a saúde das gestantes.  

Apesar de sermos tentados a falar de determinados assuntos apenas nas datas comemorativas, o debate deve ocorrer permanentemente, afinal não se amamenta apenas na Semana Mundial, e sim o ano inteiro. Estratégias para sensibilizar e mobilizar também são bem-vindas dentro e fora das campanhas. Este post é uma forma de lançar o assunto para reflexão entre aqueles que leem este blog. Se conseguir tocar ou estimular alguém a fazer alguma coisa, já vai ter valido a iniciativa. Afinal, o papo se enche de grão em grão.


Depoimento da atriz Juliana Paes sobre Campanha de Aleitamento 2011 

Filme oficial da Campanha de Aleitamento 2011

PS: Este post é dedicado à minha prima Nalba Diniz e à minha amiga Letícia Garcia, que acabaram de ter seus bebês nos últimos dias, além da colega de doutorado Irene Rocha Kalil, que está grávida. Parte do que escrevi foi pensando em vocês. Beijos às três!

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A parte que nos (a)parte

- Qual será a parte que nos cabe?
- Será que cabemos todo na parte exposta?
- Ou serão as outras partes que nos cabem realmente?


Apesar de parecerem meio sem sentido, as questões que abrem este post pretendem lançar uma reflexão sobre a questão da imagem da doença. Já há algumas semanas, venho pensando muito sobre o assunto, mas de forma embrionária ainda, tentando traçar um paralelo com a forma como as enfermidades são vistas e compreendidas pelas pessoas a partir da simbologia das imagens criadas socialmente. Pode parecer mais louco ainda, mas isso surgiu forte na minha cabeça com a morte da cantora Amy Winehouse (1983-2011), em julho passado. No final de sua carreira, Amy ficou marcada como uma artista que vinha lutando contra as drogas e a bebida, mas de forma um tanto trágica. Muitos fãs iam a seus shows já com a expectativa de saber se ela conseguiria cantar o show inteiro, devido à exposição do vício, como ocorreu este ano com os espetáculos aqui no Brasil.

Embora fosse uma artista de potencialidade vocal e um talento nato invejável, Amy acabou marcada no final da carreira através da mídia por uma má fama causada pelos vexames públicos nas suas apresentações. Era como uma morte anunciada ainda em vida. A cobertura do falecimento foi um retrato fiel da imagem de uma artista jovem que morreu jovem, aos 27 anos, assim como outros astros do rock and roll, a exemplo de Jim Morrison, Janis Joplin e Jimi Hendrix, "vítima" das drogas e da bebida. Sua morte serviu para alimentar a mídia de matérias e mais matérias sobre os riscos do vício, tomando-a emblemática. O mais interessante é verificar como fatos dessa natureza fazem valer a memória jornalística, no eterno retorno às lembranças e ao jogo de sentidos. Com Elis Regina e Cássia Eller, também houve algo semelhante por parte da mídia, guardadas as devidas diferenças e proporções. Por isso, gosto do esquecer e do lembrar discursivo, pois vemos como a vida funciona em determinadas ocasiões como ciclos de idas e vindas, uma espécie de porvir inesperado-esperado, ainda mais em se tratando do discurso midiático.



Cantora Amy Winehouse, que morreu em julho de 2011 por ingestão de drogas e álcool 


Taxar a Amy como uma cantora que sucumbiu ao vício é rogar-lhe uma imagem que possivelmente a acompanhará pelo resto dos tempos. Não que isso seja uma inverdade, muito pelo contrário. Mas apenas uma forma de consolidar uma imagem após a morte que foi se formando ainda em vida - embora caiba aqui um parêntese que nem sempre determinado fato marca a imagem de alguém ou de alguma coisa, depende do contexto e da trajetória. De toda maneira, a imagem tende a reduzir o todo pela parte, uma "sinédoque discursiva" que imprime um valor globalizante a partir de um pequeno extrato que se torna representativo. Por isso, o título deste post "a parte que nos (a)parte" veio bem a calhar. Porque é reduzindo ao mínimo que podemos compreender ao máximo, dando um sentido utilitário às coisas que nos rodeiam, tendo como ferramenta a linguagem.

A respeito da imagem das doenças, penso aqui em alguns exemplos, como a Aids no início da epidemia nos anos 80, quando era taxada de "a doença dos homossexuais, dos drogados e das prostitutas", os famosos grupos de risco que facilitam a identificação. Hoje, mesmo a doença tendo mudado o perfil, essa imagem  persiste em alguma medida, com menos força evidentemente, mas ainda está presente na nossa cultura.



No início da epidemia, a Aids era denominada como "peste gay"


Outro exemplo é a gripe A(H1N1), comparada no início da pandemia à virulência da sua parente antiga, a gripe espanhola, que dizimou, pelo menos, 22 milhões de pessoas entre 1918 e 1919, mais que os oito milhões mortos na Primeira Guerra Mundial. Neste caso específico, porém, a imagem criada da gripe suína se modificou a partir do comportamento epidemiológico da nova virose, que mostrou uma face bem mais branda que a esperada. No entanto, vimos que restava na memória uma imagem viva, apesar de aparentemente morta, de algo sinistro capaz de afetar a nossa saúde. Então, fiquei pensando mais profundo e metaforicamente que, em tempos de saúde e vida "eterna" a todo custo, "jacaré" não se esquece nunca de nadar de costas com medo das "piranhas"...

Bem, para finalizar esse fragmento de reflexão alinhavando a questão da imagem com a parte, convido-os a escutar o poema de Ferreira Gullar Traduzir-se, musicado pelo compositor cearense Fagner. Uma forma de pensar na imagem como tradução.


- Mas que tradução? 



Traduzir-se, poema de Ferreira Gullar musicado por Fagner e gravado primeiro pela cantora Nara Leão, em 1981, no seu LP "Romance Popular" (Polygram/atual Universal Music), com a participação especial de Fagner; logo depois, ainda no mesmo ano, por Fagner no seu oitavo disco de carreira, intitulado"Traduzir-se" (CBS/atual Sony Music); e, em 2001, pela cantora e compositora Adriana Calcanhoto, no DVD "Público" (Sony/BMG)  

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Saúde nas Américas por Walt Disney

Embora não pareça à primeira vista, o post desta semana guarda estreita relação com o da semana passada sobre memória. Desta vez, trato do passado e do presente das doenças, tomando como ponto de partida o Walt Disney. Ano passado, descobri por intermédio da doutoranda alemã em geografia social Henriette Neef a animação Insects as Carriers of Disease (em inglês, Insetos como Vetores de Doença). Produzido pelos Estúdios Walt Disney em 1944, o desenho de aproximadamente nove minutos de duração conta a história do desleixado Charlie, personagem principal do vídeo.

Reduzido ao tamanho de um inseto, Charlie conhece de perto o perigo das moscas, mosquitos e pulgas, bastante comuns em sua casa e causadores, respectivamente, da disenteria, da malária e do tifo. Sem cuidado com a limpeza da sua residência e a própria higiene pessoal, Charlie é visto como um cara boa-praça que recebe bem todos os visitantes que vão à sua casa, "até os porcos e as galinhas", conforme diz o narrador do filme, em tom de ironia. Já os insetos, alçados à condição de "piores inimigos", são responsáveis por provocar mortes. Nesse sentido, a história do Charlie é emblemática para mostrar de forma um tanto maniqueísta os insetos como "monstros" perigosos capazes de verdadeiras barbaridades, sendo a principal delas transportar os micróbios causadores das moléstias.

Esta semana, ao pesquisar na internet mais informações sobre o filme, constatei que Insects... faz parte de uma série criada por Walt Disney sob o título de Health for the Americas (em inglês, Saúde para as Américas). Essa série foi encomendada pela extinta Agência de Negócios Interamericanos, um serviço governamental dos Estados Unidos que promovia nos anos 40 a cooperação interamericana, principalmente nas áreas comercial e econômica. A proposta do projeto era simples: apresentar problemas de saúde comuns nos países em desenvolvimento da América do Sul e as respectivas soluções que poderiam ser adotadas pelas pessoas para combater esses problemas.


Série apresenta problemas de saúde dos países latino-americanos

Apesar de já ter quase 70 anos, o filme guarda uma atualidade se compararmos ao discurso midiático sobre doenças, sobretudo as infecciosas. O caso da dengue é exemplar para mostrar como o mosquito Aedes aegypti é convertido nas narrativas como o "vilão", inclusive nas estratégias de combate divulgadas pelo poder público através da imprensa nas quais o inseto costuma ser o foco. As epidemias cíclicas registradas no Brasil seriam o ponto de contato entre o ontem e o hoje na produção de sentidos: as epidemias carregando consigo a noção de "mal" sanitário, que potencialmente espalha a doença e o medo entre os cidadãos, e o mosquito, apesar de minúsculo, sendo considerado o grande responsável pela situação, por ser visível e mais fácil de combater no âmbito individual.

Bom, puxar o fio do novelo da memória das enfermidades traz à tona diversas questões pertinentes ao presente que demandam outro(s) post(s), algo que, com certeza, ocorrerá. Neste momento, o mais interessante é assistir ao Insects as Carriers of Disease. Para quem trabalha com saúde pública, especialmente nas áreas de vigilância ambiental e epidemiologia, o conteúdo do filme poderá suscitar algumas reflexões que gostaria de poder compartilhar posteriormente. Afinal, aproveitando o título de um dos livros da professora de Psicologia Social da USP Ecléa Bosi, "o tempo vivo da memória" diz muito sobre a nossa vida e a nossa história, devolvendo-nos o que o passado percebeu e o presente costuma esquecer. Felizmente, existem os homens e as narrativas para poderem lembrar! Se recordar é viver, como diz a canção popular, assistamos então:

Insects as Carriers of Disease (versão em espanhol)


Filme criado pela Walt Disney Productions em 1994 dentro da série Health for the Americas, sob encomenda da Agência de Negócios Interamericana dos EUA
  
PS: A título de curiosidade e conhecimento, na versão disponível no YouTube em espanhol, o nome do personagem principal do filme é modificado para "John". Entretanto, quem acessar o link do Google Videos (http://video.google.com/videoplay?docid=641174200516837622#) verá que, na versão em inglês, o personagem chama-se originalmente "Charlie", como eu havia dito. Além disso, o narrador não é irônico, como na versão em espanhol, algo importante de ser percebido por modificar o tom do desenho.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

O ontem no amanhã

Tenho pensado muito na memória nesses últimos dias. Aliás, a memória é um dos conceitos-chave para o meu doutorado, acho que já mencionei isso, além de ter lugar cativo na minha memória (desculpem-me pelo trocadilho meio infame!) desde criança. Sempre gostei de ouvir as pessoas mais velhas contando as suas histórias. E, mais do que ouvir as histórias, ver o rosto dessas pessoas e tentar perceber o semblante delas no momento em que as lembranças vinham à tona na mente, especialmente aquelas recordações mais especiais, fossem elas boas ou ruins. É como se determinada janela do consciente se abrisse, evocando informações disponíveis no repositório de experiências vivenciadas.


Memória e atualidade sempre se unem na produção de sentidos

É através da memória que também damos significado à nossa vida. E aí eu escrevo também em defesa da memória, porque geralmente damos mais importância à atualidade, esquecendo-nos de que a remissão ao passado nos ajuda a produzir sentido(s) no presente - ainda mais quando tratamos de linguagem. Aí então a discussão fica ainda mais incorpada, já que, para produzirmos sentido, é preciso que já tenhamos sentidos prévios.


"O dizer não é propriedade particular.
As palavras não são só nossas.
Elas significam pela história e pela língua.
O que é dito em outro lugar também significa nas 'nossas' palavras.
O sujeito diz, pensa que sabe o que diz,
mas não tem acesso ou controle sobre o modo
pelo qual os sentidos se constituem nele"
Eni Orlandi na página 32 do seu livro Análise do discurso,
publicado em 2007 pela Editora Pontes


Confesso que não estava imaginando inicialmente falar sobre memória neste post. Mas as circunstâncias me levaram a tratar do assunto. Justamente porque vejo cada vez mais como a minha memória musical está impregnada de outras memórias, algumas bem distantes de mim mesmo. Dias atrás, ao dar uma fuçada no YouTube (www.youtube.com) atrás de registros musicais raros ainda desconhecidos para mim, deparei-me novamente não sei como com a canção Rio antigo, do Nonato Buzar e do Chico Anísio. Para quem não sabe, Chico, além de comediante, é compositor bem interessante, diga-se de passagem. Já o Nonato, embora não passe de um ilustre desconhecido para a maioria das pessoas, já está no ofício da música há bastante tempo, tendo composto boa parte das mais importantes aberturas de novelas globais, sobretudo nos anos 70. 

Durante muitos anos, eu nem sabia o título da canção Rio antigo. Tinha ouvido em algum lugar quando criança (com certeza, não foi na discoteca lá de casa) e isso ficou. Sempre que escutava, batia uma saudade e uma nostalgia de um tempo que nunca vivi. Ou que tinha vivido em vidas passadas. Ou simplesmente na vida de outras tantas canções que povoaram - e ainda povoam - o meu inconsciente particular-coletivo. Por isso, as diversas menções feitas pelo Nonato e pelo Chico Anísio aos "velhos tempos" têm um sabor especial hoje em dia em pleno Rio. Porque, em certa medida, vou tentando resgatar imaginariamente um pouco da beleza antiga da Cidade Maravilhosa a partir do que eu ouvia dos meus pais, familiares, leituras, vídeos, filmes e músicas. Toda uma memória que foi se formando internamente a partir de dados externos a mim. Que bom! Assim o Rio e eu vamos nos aproximando pouco a pouco para "trocar umas ideias" e reencontrar a cidade antiga na cidade nova na alegria de ver a história se formando a partir de tudo aquilo vivido.

- E ver e entender a beleza do verso "...o ontem no amanhã..." tanto na música quanto na nossa vida de maneira geral. Como nos velhos (e nos novos!) tempos. Que essa outra memória me ajude a refletir melhor sobre a memória da minha pesquisa.


Rio antigo, composição de Nonato Buzar e Chico Anísio gravada pela cantora Alcione em 1979 no LP Gostoso Veneno (gravadora Philips-Polygram/atual Universal Music), o quinto disco de carreira da "Marrom" 

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Belas noites de São João

É engraçado como a distância nos aproxima mais de nossa cultura local. Eita, saudade danada das fogueiras e do calor junino do Nordeste! Por mais curiosidade e vontade que tenha de me conectar com o mundo de fora, minha identidade sempre será marcada pela minha cultura, minha história. Que bom ter essa memória afetiva e social! Hoje, mais do que nunca, sei que ela estará comigo onde quer que eu vá, seja aqui, ali ou alhures. Por isso mesmo, orgulho-me de ser recifense, nordestino, brasileiro, sul-americano, planetário, desejando poder compartilhar minha cultura com outras culturas. Global sempre com pé na regionalidade. Olhemos, então, para o céu no dia de hoje. Ele deve estar lindo e em festa...


Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo
Olha pra aquele balão multicor
Como no céu vai sumindo

Foi numa noite igual a esta
Que tu me deste o teu coração
O céu estava assim em festa
Pois era noite de São João

Havia balões no ar
Xote e baião no salão
E no terreiro o teu o olhar
Que incendiou o meu coração
[Olha pro céu, canção de Luiz Gonzaga e José Fernandes, datada de 1951 e gravada pelo próprio Gonzagão e diversos outros artistas]



sexta-feira, 17 de junho de 2011

A epidemiologia e o poder dos números

Desde que comecei a atuar na área da saúde, tive, de cara, uma identificação muito grande com a epidemiologia. Por estudar a distribuição da saúde-doença nas populações ou em grupos de pessoas, esse campo de estudo traz consigo um saber que é muito caro: o de determinar os fatores que condicionam e determinam a ocorrência dos fenômenos nas coletividades. Sempre me interessei por conhecer mais sobre o funcionamento das sociedades, sendo na saúde então o aprofundamento analítico tende a ser cada vez maior, pela quantidade de indicadores e outros dados que quantificam os riscos.


Aos profissionais da mídia, o saber da epidemiologia é um prato cheio. Foi para mim durante um bom tempo em que trabalhei em jornal e, posteriormente, em assessoria de imprensa. Os números reinam absolutos, uma vez que concretizam para as pessoas - nós, reles mortais,- a real situação dos problemas e agravos de saúde. Na produção da notícia, os números ainda ajudam a construir as manchetes das matérias, algo extremamente interessante para o discurso jornalístico. A gripe A(H1N1), a popular suína, e a contaminação pela dita "superbactéria" Escherichia coli são dois exemplos recentes do uso dos dados epidemiológicos por parte da mídia.


Ainda quando cursava o mestrado, fui procurar saber mais sobre a epidemiologia, até porque o meu projeto teve o intuito de refletir sobre o discurso da dengue na mídia. Nesse sentido, os registros da doença tinham suma importância para mim na construção dos sentidos. Aí, lendo um pouco sobre a constituição da epidemiologia, descobri um aspecto que muito me agradou: esta ciência tinha parentesco com a comunicação. Apesar das diferenças existentes, ambas fazem parte das ciências sociais, com o diferencial de a epidemiologia ainda ser constituída pela estatística e a medicina clínica. No caso da epidemiologia, as ciências sociais ajudam a analisar as questões da saúde pública no âmbito das coletividades, os aspectos sociais do mundo humano, como diz o nosso Wikipédia, tão caro "companheiro" de pesquisa nos dias de hoje.


Saúde-doença é o foco de estudo da epidemiologia

Esta semana, ao me preparar para um seminário sobre epidemiologia e risco no PPGICS/Fiocruz, dentro dos trabalhos previstos para o doutorado, comecei a refletir um pouco mais sobre o poder dos números para a epidemiologia a partir de uma certa "matematização" na leitura dos eventos da saúde. É inegável a contribuição dessa ciência para a sociedade por buscar compreender as condições de saúde das populações, dando subsídios consequentemente para se prevenir a ocorrência de doenças e se promover a saúde. No entanto, os cálculos construídos pela área ao longo do tempo assumiram uma super importância, deixando de lado as questões socioculturais. Não é por menos que se critica atualmente uma certa distância assumida pela epidemiologia em relação às questões sociais, defendendo uma reaproximação na avaliação da saúde.


Leio essa "matemática" da vida em que vivemos como algo intrínseco do contexto contemporâneo. À medida que progredimos, temos a necessidade de regular o mundo, controlá-lo, na tentativa de reduzir as incertezas e garantir a tão sonhada segurança total. Segundo Grácia Gondim, no livro "O território e o processo saúde-doença", uma das fontes de risco e insegurança nas sociedades pré-modernas estava nos fatos do mundo físico. "Porém, com o advento da modernidade e com a proliferação dos sistemas peritos [sistemas que buscam regular a vida social por meio de estratégias que têm como parâmetro o cálculo probabilístico do risco, orientando assim a vida social], os riscos tendem a ocorrer justamente pela busca de controle e segurança", afirma a autora.

Riscos crescem à medida que o homem busca controlar o mundo

A grande "novidade" é que o controle não será possível jamais. Por mais que o homem queira e busque formas de intervir sobre os riscos que ele mesmo construiu e sistematizou ao longo do tempo e do espaço, a vida sempre será aberta ao acaso e aos imprevistos que a vida nos prega vez por outra. Por isso mesmo, no final deste post, rio com uma ponta de satisfação e ironia, lembrando-me de um trechinho da sábia canção "Da lama ao caos", do Chico Science, que retrata bem a postura do homem diante deste "mundo de Deus":

Que eu me organizando posso desorganizar
Que eu desorganizando posso me organizar
Que eu me desorganizando posso me organizar
[Da lama ao caos, canção composta por Chico Science e gravada no CD de mesmo nome pela gravadora Chaos/Sony Music (1994)] 

E assim vamos nos organizando, desorganizando, desorganizando, organizando...

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A vez da voz e a voz da vez

Mais do que uma questão sonora ou mesmo musical, a voz vem assumindo cada vez mais uma posição de destaque nos estudos da linguagem. Cada discurso, cada texto tem a potencialidade de suscitar dentro de si distintos ecos (leia-se aí sentidos) a partir dos significados que são produzidos em sociedade. Isso nos leva a pensar que a nossa fala traz "multidões dentro de nós", remetendo a Inesita Soares de Araújo e Janine Miranda Cardoso no livro Comunicação e Saúde. A linguagem que utilizamos é relacional, depende de referenciais criados anteriormente para constituir sentidos. É claro que não é apenas memória, mas é também memória. Uma miscelânea do antigo com o novo.

Nesse sentido, o conceito de polifonia pode ser considerado constitutivo do discurso. Não é por menos que o russo Mikhail Bakthin (1895-1975) é tão cultuado entre o linguistas hoje. Os estudos dele, já nas primeiras décadas do século XX, davam conta de uma visão de língua não apenas como sistema, mas como algo que mantinha relação direta com o extra-linguístico, como o contexto da fala e o momento histórico. Algo extremamente moderno ainda nos dias de hoje e que só começou a ser valorizado após a morte de Bakthin.


Bakthin pensou a polifonia no contexto da língua

Termo comum à música, a polifonia foi tomada emprestada por Bakhtin para o campo lingüístico ao tratar do romance de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), indicando a presença de vozes autônomas dentro do discurso e que coexistem em igualdade de posição. O autor do romance seria, nesse caso, um “orquestrador” num universo plural, tendo as vozes liberdade para concordar ou discordar dele, como se tivessem vida própria. Com as consciências participando em pé de igualdade, a polifonia traria em si a equipolência como característica capital, além de uma interação sem imposição de determinadas vozes sobre outras.

Pensando no nosso mundo da vida - como a professora Regina Marteleto costuma dizer nas suas aulas -, a polifonia é algo que gera reflexão, já que as relações de poder entre as diferentes vozes sociais são desiguais. Todos falam, mas nem sempre as suas vozes têm os mesmos apelo e força. Dependendo da posição ocupada por determinada voz no campo onde o sujeito está inserido, ela pode ser supervalorizada ou até mesmo silenciada. Afinal, vivemos numa arena de embates, seja na casa, na escola, no trabalho e até mesmo na mesa de bar com os amigos, na qual lutamos constantemente (muitas vezes, de maneira inconsciente) a fim de nos colocarmos diante do outro com os nossos pontos de vista, nossas convicções e nossas verdades. Por isso, entendo que a vida da gente é política num sentido mais geral, por sermos cidadãos e convivermos em sociedade.

Não pretendo me estender mais nisso no momento, pois o assunto merece um aprofundamento, inclusive de minha parte. Para não fazer diferente, deixo-os com uma boa letra de canção brasileira para instigar o "matutamento" desta voz que nos persegue, constitui-nos enquanto gente e às vezes nos prega peças. A voz do dono e o dono da voz, do nosso querido Chico Buarque. Composta para o LP "Almanaque", de 1981, a música é uma resposta ao fato de Chico se ver novamente nas mãos da gravadora Polygram/Philips (atual Universal Music), pouco depois de ter rompido com o selo para fazer parte do cast da Ariola e esta ter sido ironicamente vendida para aquela. Preso novamente ao "dono da voz", a "voz do dono" resolveu fazer uma canção cheia de ironias e duplos sentidos. Uma dentre tantas vozes espalhadas por este mundão afora. 



Até quem sabe a voz do dono
Gostava do dono da voz
Casal igual a nós, de entrega e de abandono
De guerra e paz, contras e prós

Fizeram bodas de acetato – de fato

Assim como os nossos avós
O dono prensa a voz, a voz resulta um prato
Que gira para todos nós

O dono andava com outras doses
A voz era de um dono só
Deus deu ao dono os dentes, Deus deu ao dono as nozes
Às vozes Deus só deu seu dó

Porém a voz ficou cansada após
Cem anos fazendo a santa
Sonhou se desatar de tantos nós
Nas cordas de outra garganta
A louca escorregava nos lençóis
Chegou a sonhar amantes
E, rouca, regalar os seus bemóis
Em troca de alguns brilhantes

Enfim, a voz firmou contrato
E foi morar com novo algoz
Queria se prensar, queria ser um prato
Girar e se esquecer, veloz

Foi revelada na assembleia – ateia
Aquela situação atroz
A voz foi infiel trocando de traqueia
E o dono foi perdendo a voz

E o dono foi perdendo a linha – que tinha
E foi perdendo a luz e além
E disse: Minha voz, se vós não sereis minha
Vós não sereis de mais ninguém

(O que é bom para o dono é bom para a voz) 


[A voz do dono e o dono da voz, música composta por Chico Buarque e gravada por ele em 1981 no LP "Almanaque" (Ariola-Polygram/atual Universal Music) e por Cida Moreira em 1993 no CD "Cida Moreira Canta Chico Buarque" (gravadora Kuarup)]