quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Gonzagão e o lugar das efemérides para a memória


"Se é dengo a roer
Que tu quer recordar
Tamos aí com meu fole
Pra te ajudar"
Humberto Teixeira em Saudade Dóicanção
gravada por Luiz Gonzaga em 1976 no LP
Capim Novo (RCA-atual Sony Music)

Comemoração de um fato geralmente auspicioso, a efeméride é uma forma de prestarmos atenção ao tempo e rememorarmos acontecimentos do passado, muitas vezes envolvendo figuras públicas. O recurso é bastante utilizado no jornalismo, assim como os obituários e os perfis biográficos, transformando a imprensa numa instância didática e, por isso mesmo, útil, segundo afirma Alberto Dines. No seu artigo "Modo de usar", publicado no site do Observatório da Imprensa, ele informa que esse tipo de pauta foi introduzido no jornalismo brasileiro pelo jornalista e cronista esportivo Armando Nogueira no Jornal do Brasil, configurando-se num "álbum de recortes, agenda (do latim agere, agir), organização de ações, lembretes". Nesse sentido, a efeméride é um convite à memória.

Se o início de 2012 foi marcado pela lembrança na mídia sobre os 30 anos da morte da cantora Elis Regina (1945-1982), o final deste ano está sendo voltado ao centenário de nascimento do sanfoneiro, cantor e compositor Luiz Gonzaga (1912-1989). Famoso por popularizar ritmos tipicamente nordestinos, Gonzagão recebeu o título de "Rei do Baião", sendo considerado hoje um dos ícones da música brasileira de todos os tempos. Asa Branca, composta em parceria com Humberto Teixeira, é a sua canção mais emblemática. A música é considerada um hino do Nordeste por retratar a seca que castiga animais e homens que lá moram, obrigando-lhes a migrar com saudade no coração.

Assim como com Elis, Gonzagão vem recebendo várias homenagens pelo Brasil. Uma das mais importantes foi o filme Gonzaga - De Pai para Filho. Dirigido por Breno Silveira, o longa narra a relação de amor e conflito entre o sanfoneiro e o seu filho, o compositor Gonzaguinha (1945-1991). A trajetória do Rei do Baião é contada desde a fuga da cidade natal, Exu, no sertão de Pernambuco, até a turnê "Vida de Viajante", em 1981, que marcou as pazes com o seu filho. Lançado no dia 26 de outubro, De Pai para Filho já ultrapassou a marca de mais 1 milhão de espectadores em pouco menos de um mês.


Trailer do filme Gonzaga - De Pai para Filho (Brasil, 2012)


Para além de resgatar uma história importante da nossa música brasileira, a cobertura midiática a respeito de Gonzagão é revelador do lugar da memória. Embora esse recurso jornalístico seja antigo, como dissemos, ele adquiriu um valor diferenciado na atualidade, contribuindo por legitimar e enquadrar um certo tipo de memória, sobretudo no contexto de midiatização em que vivemos, marcado pelo predomínio das mediações e das interações baseadas nos meios de comunicação. Ocupando um lugar privilegiado na narrativa de fatos históricos, a mídia vulgariza a própria narrativa histórica, dotando a trajetória de vida de personalidades de uma singularidade. Através da mídia, essa trajetória existe e, a partir do presente, o passado é reinterpretado, analisa Sacramento (2009), ao tratar dos discursos midiáticos a respeito da morte do escritor Dias Gomes, ocorrida em 1999. 

Poderíamos dizer, assim, que os meios se converteriam em gestores da memória. A própria midiagrafia, que revaloriza o discurso biográfico, de acordo com Sodré (2004) e Sacramento (2009), é uma maneira de gerenciar essa memória, com vistas a evitar o esquecimento e também a conferir credibilidade à própria mídia, a partir do momento em que ela reconstrói um outro "real" através das suas práticas discursivas e a forma como ela enquadra o passado no presente. Dessa forma, diz Sacramento, pesquisar sobre a personalidade midiagrafada "é tanto analisar como a mídia escreve uma história quanto mostrar como a mídia se inscreve na história" (p. 136). Seria uma forma de refletir sobre algo mais profundo.

Uma das constatações é que a construção narrativa dá uma noção aparente de uma unidade identitária ao midiagrafado. "Há, portanto, uma idealização da vida do sujeito biografado como um 'desde sempre': um ser dotado de uma característica única e perene que marcou todas as suas ações ao longo da vida" (SACRAMENTO, 2009, p. 148, grifo do autor). A memória seria, então, um princípio organizador a conferir sentido à trajetória de vida do sujeito, através dos acontecimentos narrados, permitindo uma visão retrospectiva convenientemente disposta de uma trajetória e de uma biografia. Nesse sentido, a memória se associaria à noção de projeto (vista como um procedimento organizado para atingir determinado fim) para "dar significado à vida e às ações dos indivíduos, em outros termos, à própria identidade" (VELHO, 1988, p. 101, grifos do autor); uma identidade social que daria conta, de certo modo, das experiências fragmentadoras do indivíduo.

Não quero me alongar mais no comentário desta semana a fim de não complexificar demais o assunto. Já que tratamos de efemérides e memória em relação a Gonzagão, nada melhor que acionar a própria mídia para contar a história do nosso midiagrafado. Imagens, depoimentos, documentos, fotos e músicas se unem para reconstruir determinados fatos relativos considerados relevantes hoje em dia na trajetória do "Rei do Baião" sob uma ótica bem particular nas comemorações dos seus 100 anos de vida.


Centenário Luiz Gonzaga - Programa Fantástico (TV Globo, edição 27 set. 2012)


"Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim"
José Saramago em Passado, Presente, Futuro, poema
publicado em 1966 no livro Os Poemas Possíveis (Portugália Editora)


Referências bibliográficas
  • DINES, Alberto. Modos de usar. In: Observatório da Imprensa, edição 313, 2005. Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/modo-de-usar>. Acesso em: 14 dez. 2012.
  • SACRAMENTO, Igor. Memórias póstumas de Dias Gomes. In: Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 1, n. 20, p. 133-150, janeiro/junho 2009.
  • SODRÉ, Muniz. Prefácio. In: PENA, Felipe. Teoria da biografia sem fim. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2004.
  • VELHO, G. Memória, identidade e projeto: uma visão antropológica. In: Revista Tempo Brasileiro, n. 95, Rio de Janeiro, out-dez, 1988.