sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Memórias e saudades do Recife em carnis valles

As reflexões de hoje são livres poéticas e musicais. Um tanto nostálgicas, é verdade. Têm a ver com as lembranças e as imagens que guardamos especialmente dentro de nós a partir das experiências de vida vividas. Dos lugares, dos cheiros, dos "causos" e das pessoas que encontramos ao longo da trilha. Podem ser memórias bem particulares ou então memórias mais coletivas. Mas evidentemente memórias que marcam particularmente o indivíduo.

Fico aqui com o pensamento da autora Ecléa Bosi, que buscou desvendar em sua obra as narrativas dos velhos, que costumam guardar no tempo a testemunha viva do passado na "substância mesma da sua vida", e como a memória vai se formando a partir dessas lembranças. Uma reconstrução que recompõe no espírito o tempo.


- Caminhando pelas ruas antigas, ele cantarola versos do pernambucano Antônio Maria. Versos de saudade do cotidiano de outrora que fizeram - e fazem - certamente história. Versos de um frevo dolente que batem fundo no coração.




Ai, ai, saudade
Saudade tão grande
Saudade que eu sinto
Do Clube das Pás, do Vassouras
Passistas traçando tesouras
Nas ruas repletas de lá
Batidas de bumbo 
São maracatus retardados
Que voltam pra casa cansados
Com seus estandartes no ar
[ Frevo nº 2 do Recife, canção de Antônio Maria composta na década de 50 e resgatada por Maria Bethânia, numa gravação de 1969, ainda no começo da carreira dela ]


O cotidiano, neste caso, tem a ver com a carnis valles, mais precisamente com as brincadeiras do carnaval, uma festa milenar que foi significando e se ressignificando entre diversas culturas na busca por festejar os prazeres da carne. Poderia ser um outro cotidiano. Mas, como o acontecimento se singulariza conforme a força do fato ocorrido, o Carnaval acaba por ser único no mundo das lembranças pela quebra das regras sociais, permitida comumente nos dias de folia, tornando-o digno de história. Eis porque tão único.


- E eis porque, ausente no espaço, o tempo olha-o com curiosidade, buscando o mesmo amparo na ausência, tornando-os mais próximos que antes.


Tempos vivos de memória, que, como diz ainda Ecléa Bosi, "aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora". Memória evocação de vivências. "Enquanto evoca ele está vivendo atualmente e com uma intensidade nova a sua experiência". Memória que conserva o espírito e aquilo que esse espírito faz de si mesmo. Mais do que apenas reviver imagens do passado.


- Desse encontro entre tempo e espaço, ele vai construindo a memória da sua vida, com sons e pensamentos que se compõem, decompõem e recompõem. E aí vai começando a compreender o sentido da saudade na memória ao som de outro frevo longínquo, desta vez do carioca Edu Lobo. Uma canção inspirada no saudoso Antônio Maria durante um inverno brabo em Paris de 1966 e cheia de "flashes e saudades das coisas do Recife", nos tempos em que Edu passava as férias escolares nas casas dos tios em Pernambuco




  Hoje não tem dança
Não tem mais menina de trança
Nem cheiro de lança no ar
Hoje não tem frevo
Tem gente que passa com medo
E na praça ninguém pra cantar
Me lembro tanto
E é tão grande a saudade
Que até parece verdade
Que o tempo ainda pode voltar
[ No Cordão da Saideira, música composta e gravada por Edu Lobo em 1967 e regravada pelo MPB4 em 1968 ]

Embora pareça "falta de", em meio a perdas de coisas já passadas, a saudade dialoga com a memória num ponto de encontro com o futuro. É a comparação entre o passado e o presente que permite ao sujeito ter um grau de satisfação, seja maior ou menor do que já foi e ainda é. Considerando o carnaval um conteúdo socialmente compartilhado, aproveito os escritos de Adriano do Nascimento e Paulo Menandro, professores de Psicologia Social da Universidade Federal do Espírito Santo (da mesma área de Ecléa Bosi), para concordar com o fato de que o saudoso funciona como "articulador de determinado discurso, e não como uma simples adjetivação possível desse mesmo discurso".

Seria o saudoso, então, um dos fios a revelar algo ainda mais profundo que um mero devir. É certo que ele não volta. Porém, reencontra permanentemente em nós nos objetos que nos rodeiam, e não apenas fortemente na velhice, mas nas várias épocas e contextos da vida. Paisagens sonoras de festas e acordes de carnavais e infância, da vida banalmente cotidiana, das sociabilidades que evocam afetos no adulto e no idoso.


- Hoje, a memória não se estabiliza mais na espacialidade das coletividades como antes. Então, ele meio que se perde. E desconfia. E busca uma aproximação metafórica para constituir um novo apoio para essa memória. E as memórias dele em meio a saudades.


As we grow older
The world becomes stranger,
The pattern more complicated
Of dead and living.
Not the intense moment
Isolated, with no before and after,
But a lifetime burning in every moment
And not the lifetime of one man only
But of old stones that can not be deciphrered.
[ Trecho de East Coker, poema de T. S. Eliot publicado em 1940 e que compõe um poema maior intitulado "Four Quartets" ]


Referências bibliográficas

BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 15 ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2009[1979].
BOSI, E. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. 2 ed., São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
NASCIMENTO, A. R. A.; MENANDRO, P. R. M. Memória social e saudade: especificidades e possibilidades de articulação na análise psicossocial de recordações. Memorandum. Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP, n. 8, abr. 2005. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/artigo01.pdf>. Acesso em: 13 out. 2011.
NOGUEIRA JR., A. Projeto releituras. Disponível em: <http://www.releituras.com/antoniomaria_bio.asp>. Acesso em: 14 out. 2011.
SITE OFICIAL EDU LOBO. Disponível em: <http://www.edulobo.com.br/site/>. Acesso em: 14 out. 2011.
WIKIPÉDIA. Desenvolvido pela Wikimedia Foundation. Apresenta conteúdo enciclopédico. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Carnaval>. Acesso em: 14 out. 2011.