sexta-feira, 3 de junho de 2011

A vez da voz e a voz da vez

Mais do que uma questão sonora ou mesmo musical, a voz vem assumindo cada vez mais uma posição de destaque nos estudos da linguagem. Cada discurso, cada texto tem a potencialidade de suscitar dentro de si distintos ecos (leia-se aí sentidos) a partir dos significados que são produzidos em sociedade. Isso nos leva a pensar que a nossa fala traz "multidões dentro de nós", remetendo a Inesita Soares de Araújo e Janine Miranda Cardoso no livro Comunicação e Saúde. A linguagem que utilizamos é relacional, depende de referenciais criados anteriormente para constituir sentidos. É claro que não é apenas memória, mas é também memória. Uma miscelânea do antigo com o novo.

Nesse sentido, o conceito de polifonia pode ser considerado constitutivo do discurso. Não é por menos que o russo Mikhail Bakthin (1895-1975) é tão cultuado entre o linguistas hoje. Os estudos dele, já nas primeiras décadas do século XX, davam conta de uma visão de língua não apenas como sistema, mas como algo que mantinha relação direta com o extra-linguístico, como o contexto da fala e o momento histórico. Algo extremamente moderno ainda nos dias de hoje e que só começou a ser valorizado após a morte de Bakthin.


Bakthin pensou a polifonia no contexto da língua

Termo comum à música, a polifonia foi tomada emprestada por Bakhtin para o campo lingüístico ao tratar do romance de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), indicando a presença de vozes autônomas dentro do discurso e que coexistem em igualdade de posição. O autor do romance seria, nesse caso, um “orquestrador” num universo plural, tendo as vozes liberdade para concordar ou discordar dele, como se tivessem vida própria. Com as consciências participando em pé de igualdade, a polifonia traria em si a equipolência como característica capital, além de uma interação sem imposição de determinadas vozes sobre outras.

Pensando no nosso mundo da vida - como a professora Regina Marteleto costuma dizer nas suas aulas -, a polifonia é algo que gera reflexão, já que as relações de poder entre as diferentes vozes sociais são desiguais. Todos falam, mas nem sempre as suas vozes têm os mesmos apelo e força. Dependendo da posição ocupada por determinada voz no campo onde o sujeito está inserido, ela pode ser supervalorizada ou até mesmo silenciada. Afinal, vivemos numa arena de embates, seja na casa, na escola, no trabalho e até mesmo na mesa de bar com os amigos, na qual lutamos constantemente (muitas vezes, de maneira inconsciente) a fim de nos colocarmos diante do outro com os nossos pontos de vista, nossas convicções e nossas verdades. Por isso, entendo que a vida da gente é política num sentido mais geral, por sermos cidadãos e convivermos em sociedade.

Não pretendo me estender mais nisso no momento, pois o assunto merece um aprofundamento, inclusive de minha parte. Para não fazer diferente, deixo-os com uma boa letra de canção brasileira para instigar o "matutamento" desta voz que nos persegue, constitui-nos enquanto gente e às vezes nos prega peças. A voz do dono e o dono da voz, do nosso querido Chico Buarque. Composta para o LP "Almanaque", de 1981, a música é uma resposta ao fato de Chico se ver novamente nas mãos da gravadora Polygram/Philips (atual Universal Music), pouco depois de ter rompido com o selo para fazer parte do cast da Ariola e esta ter sido ironicamente vendida para aquela. Preso novamente ao "dono da voz", a "voz do dono" resolveu fazer uma canção cheia de ironias e duplos sentidos. Uma dentre tantas vozes espalhadas por este mundão afora. 



Até quem sabe a voz do dono
Gostava do dono da voz
Casal igual a nós, de entrega e de abandono
De guerra e paz, contras e prós

Fizeram bodas de acetato – de fato

Assim como os nossos avós
O dono prensa a voz, a voz resulta um prato
Que gira para todos nós

O dono andava com outras doses
A voz era de um dono só
Deus deu ao dono os dentes, Deus deu ao dono as nozes
Às vozes Deus só deu seu dó

Porém a voz ficou cansada após
Cem anos fazendo a santa
Sonhou se desatar de tantos nós
Nas cordas de outra garganta
A louca escorregava nos lençóis
Chegou a sonhar amantes
E, rouca, regalar os seus bemóis
Em troca de alguns brilhantes

Enfim, a voz firmou contrato
E foi morar com novo algoz
Queria se prensar, queria ser um prato
Girar e se esquecer, veloz

Foi revelada na assembleia – ateia
Aquela situação atroz
A voz foi infiel trocando de traqueia
E o dono foi perdendo a voz

E o dono foi perdendo a linha – que tinha
E foi perdendo a luz e além
E disse: Minha voz, se vós não sereis minha
Vós não sereis de mais ninguém

(O que é bom para o dono é bom para a voz) 


[A voz do dono e o dono da voz, música composta por Chico Buarque e gravada por ele em 1981 no LP "Almanaque" (Ariola-Polygram/atual Universal Music) e por Cida Moreira em 1993 no CD "Cida Moreira Canta Chico Buarque" (gravadora Kuarup)]