segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Tecnologia e controle

Notícia publicada semana passada na imprensa nacional e internacional informa que a internet pode se tornar uma aliada da saúde pública no monitoramento de doenças. Estudos desenvolvidos fora do país indicam como sistemas de rastreamento são capazes de prever a ocorrência de surtos com antecedência, a partir do acesso dos usuários sobre doenças no Wikipedia, ampliando as formas de vigilância à saúde a moléstias, hoje centradas basicamente no repasse dos resultados de exames aos governos por parte de instituições e profissionais médicos. Eis abaixo os links das notícias publicadas no Correio Braziliense, de Brasília (DF), e no Los Angeles Times, dos Estados Unidos:

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/tecnologia/2014/11/14/interna_tecnologia,457487/aumento-de-consultas-a-artigos-sobre-doencas-na-wikipedia-antecede-surtos.shtml

http://www.latimes.com/science/sciencenow/la-sci-sn-wikipedia-flu-disease-predictor-20141113-story.html

A lógica proposta é interessante e, de certa maneira, também previsível, tendo em vista a ampliação do acesso à rede e o uso institucionalizado da internet nos últimos anos como lugar de consulta sobre questões de saúde. "Há um novo paciente nas salas de consulta. Municiado de informações que recolhe na internet, principalmente, ele faz uma tonelada de perguntas sobre sua doença, arrisca sugerir remédios e exames e, no limite, até coloca em dúvida o tratamento prescrito pelo especialista", afirma a revista VEJA na reportagem O consultório da internet, publicada em 14 setembro de 2005.

A reportagem diz que um estudo realizado pela empresa de consultoria americana Pew Internet & American Life Projec indica que oito em cada dez usuários da rede já acessam sites de informação médica. Entre os temas de maior interesse, estão doença específica (66%), tratamento médicos (51%), dieta e nutrição (51%), exercício físico (41%), remédios (40%) e tratamentos alternativos (30%). "No Brasil, calcula-se que mais de 10 milhões de internautas o façam com regularidade", aponta a VEJA.

O fenômeno de uso da internet assume hoje novos contornos, indicando a potência dos dados sobre acesso no monitoramento e controle da vida em rede, em nome da segurança global e de uma gestão em saúde mais eficiente em relação a doenças infecciosas. Questão que também passa pela proteção das informações na rede para evitar o uso indevido, considerando a fragmentação e fluidez do espaço virtual.

PS: Agradecimentos ao amigo Thiago Petra no compartilhamento das notícias.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Publicidade e doença


"O organismo comporta inúmeras possibilidades de doença para uma única de saúde."
Carlos Drummond de Andrade

Há cerca de um mês, eu me deparei meio sem querer num sebo aqui do Rio de Janeiro com um anúncio antigo, do final dos anos 60, publicado na Revista Seleções do Reader's Digest que muito me chamou atenção. Era uma peça publicitária da Campanha Nacional de Combate ao Câncer trazendo a cantora Elis Regina (1945-1982) como garota propaganda. A finalidade era enfatizar a prevenção contra o câncer. Considerada pela propaganda "a maravilhosa intérprete da nossa música" e "autêntica representante da graça e da beleza da mulher brasileira", a artista era convocada para orientar as leitoras sobre os riscos da exposição exagerada e contínua ao sol.

Vedete de uma época, Elis enquadra o rol de artistas brasileiros que Edgar Morin (2002) consideraria como "olimpianos modernos". Espécie de semideuses que encarnam uma dupla natureza - divina e humana -, esses olimpianos revelam a decomposição do sagrado, especialmente diante da pressão da realidade informativa e do realismo imaginário à qual estamos expostos, segundo o autor francês. Nas publicidades, bem como nas matérias jornalísticas, as celebridades, que incluem políticos, jogadores, atores e outras pessoas públicas, servem para concretizar publicamente a doença, devido ao apelo provocado pelo famoso. A intenção é humanizar um assunto como esse, tão árido muitas vezes.

Para "vencer o câncer", o anúncio enumera diversos sinais que devem ser observados e informados imediatamente ao médico, que vão desde emagrecimento sem motivo, perda anormal de sangue, sinal que cresce no corpo e distúrbios permanentes no estômago ou intestino até tosse "rebelde" e rouquidão "tenaz", adjetivos curiosos quando lidos hoje em dia. O discurso de guerra era - e ainda é - bem marcante nas comunicações referentes a doenças, com o uso de metáforas bélicas. Influenciado pelo contexto de guerras, esse tipo de discurso lança mão de termos comuns ao campo militar, tais como "guerra", "luta", "batalha" e "inimigo", a fim de convocar a população para o controle.


Anúncio de combate ao câncer com a cantora Elis Regina publicado na Revista Seleções nos anos 60 

Ao ver o anúncio, logo me lembrei do livro O Imperador de Todos os Males: Uma Biografia do Câncer (Companhia das Letras, 2012). Escrito pelo oncologista indiano Siddhartha Murkerjee e ganhador do Prêmio Pulitzer de 2011 na categoria não-ficção, a obra busca construir uma crônica dessa doença tão antiga, com cerca de 4 mil anos. Uma enfermidade "outrora clandestina", como ele mesmo diz, "sobre a qual se falava aos sussurros - que se metamorfoseou numa entidade letal, amplamente predominante e que muda de forma, imbuída de tão potência metafórica e política que costuma ser descrita como a peste definidora da nossa geração" (2012, p. 13).

Partindo da experiência na pós-graduação em imunologia do câncer e no treinamento em oncologia realizado no Dana-Faber Cancer Institute, em Boston, nos Estados Unidos, Siddhartha transforma o câncer num ator social concretizado através de vários fatores que compõem o enredo da doença. Por trás dessa licença poética, o objetivo é saber se a morte e a erradicação do câncer serão possíveis no futuro. Difícil indagação, sobretudo pelo caráter múltiplo e complexo da enfermidade, que conta hoje com mais 200 tipos de cânceres e 500 subtipos histológicos (os diferentes tipos de um mesmo tumor).


Cartaz da campanha da Associação Paulista de Combate ao Câncer (SP) nos anos 40/50

"É o câncer que desempenha o papel de enfermidade cruel e furtiva, um papel que conservará até que, algum dia, sua etiologia se torne tão clara e seu tratamento tão eficaz quanto se tornaram a etiologia e o tratamento da tuberculose", previu a escritora Susan Sontag, em 1978, no célebre ensaio A Doença como Metáfora. Para a ativista americana, ela própria vítima de um câncer nos anos 70 e falecida em 2004, o câncer é uma doença polêmica, usada para propor novos padrões de saúde individual e exprimir um descontentamento para com a sociedade. "As metafóras da doença são usadas para julgar a sociedade, não como desequilibrada, mas como repressiva", explica.

Não à toa, a Aids, denominada no início da pandemia, de "câncer gay", impulsionou uma ressignificação semântica pelo fato de as duas doenças guardarem entre si algo de tenobroso e intrinsicamente degenerativo na forma de acometer o corpo, além do pouco conhecimento que se tinha sobre elas. Nada mais instigante observar/investigar/analisar a doença no meio sociocultural, não apenas pelos diferentes jogos de sentido formados ao longo do tempo, como também pelos vários - e, algumas vezes, semelhantes - significados que ela adquire ao longo do Tempo, evidentemente respeitando os contextos variados.

"A memória cola fragmentos de várias porcelanas no mesmo vaso"
Carlos Drummond de Andrade 



REFERÊNCIAS

  • MORRIN, E. Cultura de massas no século XX: neurose. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. 
  • MUKHERJEE, S. O imperador de todos os males: uma biografia do câncer. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • SONTAG, S. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Graal, 2002.

sábado, 12 de outubro de 2013

Nas asas presentes da imaginação



"Todas as pessoas grandes foram um dia crianças. Mas poucas se lembram disso" 
Saint-Éxupery

Nesta última semana que precedeu o Dia da Criança (12 de outubro), choveram postagens no Facebook de amigos, colegas e amigos e conhecidos de amigos com fotos de quando eram pequenos. Foi um fenômeno interessante de se observar, quase como um efeito em cascata: a cada dia, mais e mais pessoas resgatavam de seus arquivos pessoais fotos da infância para postar nos seus perfis e receber as esperadas curtidas, como que impulsionados pelas postagens dos outros. Nada mais sintomático, tendo em vista a imersão em que vivemos numa cultura de memória.

É evidente que esse compartilhamento de lembranças não é novo no Face. Histórias e fotos antigas fazem parte das práticas cotidianas da/na rede. Integram o uso social desse tipo de tecnologia, sendo o tempo atual a chave para compreensão do papel da memória no nosso mundo contemporâneo, conforme aponta a professora de Comunicação e historiadora Ana Paula Goulart Ribeiro (2013, p. 71, grifos da autora). "Porque somos instados a lembrar - talvez por ansiedade em relação ao presente e medo do futuro - é que todos nós nos tornamos historiadores de nós mesmos (como afirmou Pierre Nora*) ou homens arquivísticos (segundo a expressão de Fausto Colombo**)", explica a autora.

Para Ana Paula, o culto do passado está presente na sociedade como um todo, tendo maior visibilidade nos meios de comunicação, especialmente com o advento da internet, que democratizou o processo de arquivamento das experiências e do passado, antes circunscrito apenas a determinadas instituições e grupos, como a Igreja e o Estado. Não é de se estranhar, então, o uso do Facebook como lugar de armazenamento e registro público dessa memória nesse processo de alargamento, com a intenção das pessoas de assegurarem vínculos e experiências virtuais, legitimando, com isso, as próprias identidades sociais a partir das suas recordações imagéticas-textuais nas nuvens.

Embora não tenha querido inicialmente postar uma foto quando criança na minha página do Face, fiquei muito inspirado com as diversas imagens compartilhadas por todos na rede. E aí comecei a lembrar da minha própria infância e tentar dar a minha contribuição diferenciada nesse processo. Para "variar", lancei mão da música como forma de marcar o meu Dia das Crianças. Sempre permeado pelas canções desde muito pequeno, ela simboliza o que há de mais marcante e profundo, talvez por tocar sensorialmente a alma e o coração.

Acabei escolhendo Lili (Hi Lili, Hi Lo), uma música linda e singela que conheci lá pelos meus oito anos de idade, no disco do grupo infantil Trem da Alegria, na voz da cantora Gal Costa e do músico Moreno Veloso, filho do compositor Caetano Veloso. Versão em português do carioca Haroldo Barbosa, essa canção foi composta pelo polonês Bronislau Kaper (música) e o americano Helen Deutsch (letra), tendo integrado a trilha sonora do filme Lili, de 1953, estrelado pela atriz Leslie Caron e com direção de Charles Waters.

Para este post, optei pela cena de Lili em que a Leslie canta Hi Lili, Hi Lo com um fantoche, além do registro ao vivo feito por Gal, em 1984, durante a turnê do seu show Baby Gal, no qual ela canta e ainda coloca algumas pessoas da plateia para entoarem junto. É um vídeo muito simpático pela evocação que faz da infância, seja pelo arranjo doce apenas com a voz aguda da cantora mais os teclados, despertando os tempos de infância, seja pela própria canção, que fez parte do imaginário de crianças do mundo ocidental desde meados do século 20. Por isso, as desafinadas do público no registro da Gal soam até simpáticas e combinam bem com aquele/este momento de rememoração. Feliz Dia das Crianças!


Cena do filme Lili (1953)


Registro do show Baby Gal (1984)



"Não quero adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto;
e velhos, para que nunca tenham pressa."
Oscar Wilde


* Pierre Nora (1931) é historiador francês, conhecido pelos seus trabalhos sobre memória e com o nome ligado à Nova História, corrente que questionava a visão positivista da História e propunha um novo olhar sobre o tempo histórico, configurado a partir de ritmos diferentes para os acontecimentos e a aproximação com outras disciplinas das Ciências Sociais.

** Fausto Colombo (1955) é professor de Teoria e Prática da Mídia e Mídia e Política da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade Católica de Milão, na Itália. Analista da memória social face a cultura eletrônica, ele estuda a paixão arquivística observada na atualidade através da tecnologia no contexto coletivo e na vida cotidiana.



REFERÊNCIAS

  • LOGULLO, E. Gal Costa Biografia: 1984. São Paulo, 2005. Disponível em: <http://www.galcosta.com.br/sec_biografia.php?id=33>. Acesso em: 12 out. 2013.
  • RIBEIRO, A. P. A memória e o mundo contemporâneo. In: RIBEIRO, A. P.; FREIRE FILHO, J.; HERSCHMANN, M. (Orgs.). Entretenimento, felicidade e memória: forças moventes do contemporâneo. Guararema, SP: Anadarco, 2013. p. 65-84.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Navegantes I


"Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu"
Fernando Pessoa

A mitologia faz parte da vida ocidental há milhares de anos, com a função de significar e interpretar a cultura de um povo. Histórias populares ou religiosas, os mitos são narrativas que costumam explicar a origem de alguma cultura, do mundo e do próprio universo. A mitologia greco-romana, junção das religiões grega e romana pela semelhança nas tradições dentro outros aspectos em comum, é uma das mais simbólicas, a narrar histórias de deuses e semi-deuses, com poderes além dos seres humanos, nós, os "pobres mortais".

Senhores da natureza, essas divindades possuíam forças sobrenaturais, apesar da semelhança física com o homem. Suas lendas são lembradas até hoje, tendo influência em vários campos, como a matemática e a filosofia. Na arte, a mitologia foi pano de fundo para a criação de várias obras desde tempos antigos. O mito do Orfeu e da Eurídice é um dos mais conhecidos e inspiradores de poetas, escultores, pintores e compositores.

A lenda conta a história de amor entre Orfeu, considerado o músico mais talentoso dentre todos, e Eurídice, uma ninfa da floresta que morreu após ser picada por uma serpente, ao tentar fugir de um pastor que muito a admirava. Desesperado, Orfeu desce ao mundo dos mortos na tentativa de resgatar a sua amada. Tendo a permissão para levá-la de volta, Orfeu sai guiando a sombra de Eurídice pela trilha com a condição de não olhar para trás.

Quadro "Orfeu guiando Eurídice do submundo", de Jean-Baptiste Corot
Porém, perto de chegar à saída do reino dos mortos, ele não resiste e se vira para Eurídice, que é carregada novamente para o mundo da escuridão. Perseguido pelas mulheres durante o resto de sua vida, Orfeu acabou morrendo tempos depois, devido ao ódio das bacantes (sacerdotisas de Baco, deus do vinho e das festas), que o desejavam e tentavam de tudo para conquistar o seu amor, devido à atração que ele exercia com a sua bela música triste.

No Brasil, a história de Orfeu e Eurídice inspirou o poeta e diplomata Vinicius de Moraes. Em 1954, ele escreveu a peça teatral Orfeu da Conceição, uma adaptação do mito grego à realidade das favelas cariocas. Nela, o Orfeu se transforma num sambista, filho de um músico com uma lavadeira, e Eurídice, uma moradora do morro onde ele vivia. O interesse pelo musical acabou gerando, cinco anos depois, em 1959, o filme ítalo-franco-brasileiro Orfeu Negro (também conhecido como Orfeu do Carnaval), Palma de Ouro, em Cannes.

O poeta e compositor Vinicius de Moraes
Apesar de não fazer parte da trilha sonora original da peça, Valsa de Eurídice é claramente inspirada no mito de Orfeu e Eurídice. Uma das canções compostas unicamente por Vinicius (mais conhecido como letrista apenas), ela reflete a melancolia da perda, pela saudade e a falta da amada. Embora conheça essa canção desde os meus seis anos de idade na voz da cantora Elis Regina no registro ao vivo do seu derradeiro show, Trem Azul (1981), só na semana passada me veio à mente a correlação entre a música e o mito greco-romano durante uma conversa com um amigo muito querido sobre a sua avó paterna, a D. Eurídice.

De imediato, lembrei-me da canção do Vininha e, em seguida, do referido mito. Como o comentário desta semana tem a ver com memória, assim como outros tantos que já escrevi nestes dois anos e meio de blog, decidi dedicar este post ao grande Vinicius de Moraes (que, em 2013, completaria 100 anos, se estivesse vivo), a Elis, aos milenares contos que englobam a história da nossa humanidade, ao meu amigo Márcio e à saudosa avó Eurídice, que, na sua aparente simplicidade, acabou cativando o imaginário do neto desde a mais tenra idade. Nada melhor, então, do que coroar essa ligação com poesia e música...

"Para eso fuimos hechos:
para recordar y ser recordados
para llorar y hacer llorar
para enterrar a nuestros muertos.
Por eso tenemos brazos largos para los adioses
manos para recoger lo que fue dado
dedos para excavar la tierra"
Vinicius de Moraes em Poema de Navidad 




"Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
e a minha alma a lenha desse fogo"
Fernando Pessoa em Navegar é Preciso




"Tudo vale a pena se a alma não é pequena."


segunda-feira, 20 de maio de 2013

De volta ao (diferente) começo

Tomei de empréstimo o título de uma canção do mestre Gonzaguinha para reformular o sentido atual do voltar. O tempo não pára, já cantou Cazuza. Mas, mesmo assim, o começo pode ser sempre retomado de alguma maneira. Não na sua totalidade ou exatidão, é certo, mas guardando um pouco da essência primeira, ainda que seja uma releitura essencial. E aí eu me arvoro a brincar com o sentido da essência adjetivada. Daquilo que é natureza íntima, significação especial, ideia principal, substância aromática, óleo fundamental.

Do que é viscoso resvalam moléculas, umas após outras. Apesar da ausência de textos, ideias e canções no passado recente, a existência continua e recomeça a cada dia, como hoje, em que o diário fez renascer a novidade singular. Uma volta diversa e particular. Parte da rotação planetária e corporal em que a razão se encontra com a emoção para, juntas, intuírem novamente o raciocínio, as grandezas, o juízo, a respiração, a circulação, as secreções e a comoção. Contrárias purezas. Simples acontecimentos, novas memórias.


Volta (Lupicinio Rodrigues) na voz de Gal Costa durante temporada do show "Índia" (1973)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

As têmporas do tempo



"Minha história se desdobrará em poemas:
Assim outros homens compreenderão
Que sou apenas um elo da universal corrente
Começada em Adão e a terminar no último homem"
Murilo Mendes em Eternidade do Homem



Interessante ver como a memória transparece em pensamentos, vontades e projetos. Na música, uma das iniciativas mais recentes vem sendo encabeçada pelo ex-titã Charles Gavin. Histórias & Memórias Música Pop Brasileira -  misto de palestra, entrevista e show - une música e bate-papo, rememorando fatos e canções marcantes na carreira de artistas da música brasileira. Em 2012, a iniciativa foi realizada em Brasília (outubro) e no Rio de Janeiro (novembro). Na capital federal, o projeto contou com a presença de Hyldon e Danilo Caymmi. No Rio,os convidados foram Joyce, Wilson das Neves e Leila Pinheiro.

Para além da delícia de escutar a história e as histórias em prosa e melodia desses artistas, o projeto é revelador da importância que a memória assume na nossa cultura. Há uma necessidade vital na contemporaneidade de se evitar o esquecimento e, por isso, iniciativas como o projeto Histórias... visam ao resgate de parte da memória da MPB.

Dos shows para a internet, as apresentações foram condensadas em vídeos curtinhos e disponibilizados no youtube (www.youtube.com) ainda em dezembro de 2012 para o deleite dos fãs. Aos que estiveram presentes a alguns dos pockets shows promovidos, como eu, esses vídeos representam um pouco do que foram aqueles momentos em que a memória se tornou o fio condutor a costurar a trajetória narrativa dos artistas.

Diz o sociólogo francês Maurice Halbwachs (2006) que as testemunhas orais ou escritas nos ajudam a corroborar ou recordar uma lembrança. Atualmente, a mídia - incluindo aí a internet - seria um desses testemunhos relevantes. A memória midiática seria, então, memória social e situação social de memória, uma vez que produz lembranças para falar a um público não só contemporâneo, como também distante e futuro, segundo defende Gérard Namer (1987), outro sociológico francês.

Por ser um grupo normativo, que acumula memórias e se legitima por esse acúmulo, a mídia se configura num objeto importante de ser estudado. Consolida-se como uma comunidade interpretativa que mantém o público pelas suas histórias, narrativas, retóricas e, principalmente, a maneira como o conhecimento é representado nesses relatos.

Dos vídeos disponíveis do projeto Histórias & Memórias Música Pop Brasileira, selecionei os três da temporada carioca, que contou com a participação da compositora Joyce, da cantora Leila Pinheiro e do baterista Wilson das Neves. Três momentos distintos e bem descontraídos de música e narrativa. Como não consegui inserir diretamente neste post os vídeos aos quais me refiro, decidi informar o link para quem tiver interesse em assisti-los.


Charles Gavin e Joyce


https://www.youtube.com/watch?v=gVNRd1KGkZs
Leila Pinheiro e Charles Gavin


Wilson das Neves

sábado, 19 de janeiro de 2013

Elis, Mídia e Memória, Sempre-Vivas


Largo Elis Regina - Vila do IAPI - Bairro Passo d'Areia - Porto Alegre (RS)

Essa lembrança talvez nem seja nossa,
mas de alguém que, pensando em nós, só possa
mandar um eco do seu pensamento
nessa mensagem pelos céus perdida
Mário Quintana em "A Cor do Invisível" 


Não estava pensando em escrever comentário esta semana. Mas um breve post no Facebook escrito por mim sobre a cantora Elis Regina me fez bater o desejo inesperado de desenvolver um pouco mais sobre o comentário no meu blog. Para "variar", a memória é o fio condutor das reflexões, afinal é o conceito que mais mexe com a minha cabeça em função do doutorado. E por que Elis? Porque ela representa um case bastante interessante de como a memória a respeito de um ídolo musical significa na nossa cultura.

Falecida em 19 de janeiro de 1982, Elis marcou a música. Ainda hoje é considerada a maior cantora brasileira. A morte polêmica, provocada pela overdose de cocaína e álcool, arregimentou uma legião de fãs e admiradores, mostrando o quanto era querida pelo país. O seu velório atraiu cerca de 25 mil pessoas ao extinto Teatro Bandeirantes, em São Paulo. O Corpo de Bombeiros foi acionado para levar o seu caixão até o Cemitério do Morumbi, onde foi enterrada. Milhares de pessoas seguiram o cortejo a pé e outros tantos renderam homenagens no trajeto, jogando flores e papel picado das janelas dos edifícios.

Na época, a TV Globo acionou um helicóptero para fazer a cobertura do cortejo. Apesar de ser algo comum hoje, na época, a estratégia era arrojada, indicando a força de Elis. As demais emissoras de televisão, bem como jornais e revistas, renderam bastante espaço para tratar da morte da cantora. Antes dela, somente Francisco Alves e Carmem Miranda tinham causado tanta comoção nacional. Logo Elis, que era taxada por alguns críticos de música como uma cantora de elite... Por ser uma cria da televisão dos anos 60, justamente num momento de consolidação desse tipo de veículo, e por ter trilhado a carreira também pela TV, a popularidade da Pimentinha se mostrou mais forte do que se poderia supor. Tudo isso somado ao seu temperamento forte, à voz inconfundível e ao repertório de peso gravado ao longo da vida contribuiu para torná-la, nas palavras da própria imprensa, uma espécie de repórter do seu tempo, auxiliando na construção de uma identidade relevante. 




Uma trajetória tão marcante não poderia resultar em outra coisa a não ser saudade. Por isso, a memória em torno dela suscita uma leitura muito particular. Mesmo com momentos mais mornos, como no início da década de 90, quando parecia ter sido esquecida, Elis sempre foi motivo de pautas jornalísticas. A partir dos 20 anos de sua morte, a situação mudou de figura. Recentemente, em 2012, seu nome voltou à cena em razão das comemorações organizadas pelos filhos João Marcello, Pedro Mariano e Maria Rita em homenagem à mãe. Juntamente com os 30 anos da morte, que por si só costuma gerar cobertura, bem ao gosto das datas comemorativas, os novos projetos estimularam mais de uma centena de pautas nos veículos, alimentando ainda mais as lembranças em torno da cantora.

Ao falar sobre Elis, a mídia contribui para tornar viva a memória, além de se reafirmar como um lugar de memória na contemporaneidade, trazendo à tona um termo cunhado pelo historiador francês Pierre Nora. Lugar de aparência material e de constituição de arquivos de monta, além de configuração de uma aura simbólica sobre si mesma, garantindo a cristalização das lembranças e, principalmente, a veiculação delas para a sociedade. Lugar também de legitimação dos meios, estabelecendo um pacto simbólico com a audiência de autoridade na representação do conhecimento sobre a cantora. Espaço de poder.

A internet é um bom exemplo desse lugar de memória na atualidade. No Google, existem hoje, 3,4 milhões de links a respeito de Elis. O Youtube registra 43 mil resultados com o seu nome. Evidentemente que nem tudo term a ver com Elis. Mas é verdade que um bom acervo já foi constituído nos últimos anos com textos, imagens e áudios da cantora em sites e blogs, oportunizando o acesso da informação, sobretudo, para as novas gerações que nasceram após 1982 e não tiveram a chance de vê-la ao vivo.


Acervo Elis Regina - Casa de Cultura Mário Quintana - Porto Alegre (RS)

Inspirado nas reflexões do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), Pierre Nora considera que a moderna memória está ligada aos arquivos. Nesse sentido, a vivência de parte importante dessa memória vem sendo feita coletivamente na virtualidade das tecnologias, e não mais entre grupos físicos, como em tempos antigos. Eis aí a simbologia dos meios de comunicação na preservação das lembranças. Por isso, neste 19 de janeiro de 2013, fica difícil pensar em 31 anos "sem" Elis, já que essa preposição indica ausência, exclusão. A matéria pode até não estar presente entre nós. Porém, a memória, essa parece estar mais presente do que nunca. Mais adequado, então, seria dizer, 31 anos "com" Elis.

Poderia ficar aqui desenvolvendo mais, já que Elis se configura num ponto de partida para muitas reflexões. Mas, dada a extensão deste post, finalizo-o com o texto do escritor Luís Fernando Veríssimo publicado no jornal Zero Hora de Porto Alegre (RS), em 19 de janeiro de 1983, um ano após a morte de Elis. Acho que exprime e arremata bem o sentido da memória em relação à nossa querida Pimentinha e indiretamente num sentido mais amplo:


A voz continua, viva e límpida.
Continua nos discos e nas fitas. E continua, ainda mais límpida e mais viva, na nossa memória.

O resto é como um desenho feito a lápis, sem fixador, que vai se apagando com o tempo. O que ela fez, o que ela disse, o que disseram dela...

A voz não se apaga. O disco pode arranhar, a fita pode gastar, mas a voz que a gente guarda na memória continua tão nítida que até atrapalha: não podemos ouvir outra cantora sem ouvir, junto, a voz dela, e comparar. É covardia. Ninguém mais canta como ela.
Era uma baixinha complicada.
Uma pimenta, planta miúda e ardente. Tinha de saber como lidar, senão ela queimava. Morreu e se transformou num milagre de botânica.
Hoje é uma flor que a música brasileira usa atrás da orelha.
E o seu nome é sempre-viva.
Ela usava a voz como um instrumento.
Ela era isso, um instrumento de sopro. Como o piston, que também é pequeno e difícil mas canta como um anjo.

Só que os instrumentos, bem cuidados, duram cem anos.
E ela não se cuidou. Acabou antes do tempo.
Mas a voz continua, viva e límpida.
Continua nos discos e nas fitas. E ainda mais viva e límpida na nossa saudade
Luís Fernando Veríssimo em "Sempre-Viva!"


ELIS EM TEMPOS E ESPAÇOS DIVERSOS:
Lúcia Esparadrapo / Mudei de Ideia / Você Abusou / Mas que Doidice / Desacato (Antônio Carlos e Jocafi)


Rosa Morena (Dorival Caymmi)


Corcovado (Tom Jobim)


Canção do Sal (Milton Nascimento)


Plataforma (João Bosco/Aldir Blanc)


Ilusão à Toa (Jonnhy Alf)


"Ninguém está mais vivo que Elis Regina. Influência, exemplo, paradigma, deusa, musa. Seu legado humano e artístico é de tal ordem que, a alegria de tê-la conhecido sobrepuja o luto. [...] Ouvir Elis é para sempre."
Aldir Blanc