"Não sei se o acaso quis brincar Ou foi a vida que escolheu Por ironia fez cruzar O seu caminho com o meu" Abel Silva e Ivan Lins em Acaso "O acaso vai me proteger Enquanto eu andar distraído" Sérgio Britto em Epitáfio
Inicialmente, pensei em intitular o post desta semana de O passado no presente e no futuro, em decorrência de certas lembranças que voltaram à tona nos últimos dias. Mas aí depois decidi mudar o título para O acaso da memória. Na semana que passou, fui assistir ao novo espetáculo da Gal Costa, "Recanto", aqui no Rio de Janeiro. Em determinado momento da apresentação, Gal cantou O Amor. Música de Caetano Veloso e Ney Costa Santos, O Amor foi composta sobre um poema do russo Wladimir Maiakovski (1893-1930), considerado um dos principais nomes da vanguarda futurista e um dos maiores poetas do século XX.
Essa canção faz parte do LP "Fantasia", lançado por Gal em 1981 (gravadora Polygram-atual Universal Music). Não é das faixas mais conhecidas do grande público, mas um dos pontos altos do disco, a meu ver. Pois bem, assim que Gal cantou a música, eu me reportei imediatamente à minha infância. Era como se, por um momento, eu tivesse saído da plateia do teatro e voltado no tempo, lá pelos meus 6 ou 7 anos, para a sala da casa de meus pais. O Amor povoa a minha memória musical, assim como tantas outras canções que tocaram na radiola da sala lá de casa. Gal, evidentemente, fazia parte da nossa discoteca.
Gal Costa cantando "O Amor" (Caetano Veloso/Ney Costa Santos/Vladimir Maiakovski) - Show Recanto -
Contracapa do disco "Fantasia", de 1981
Eu me vi, então, sentado no antigo sofá, lendo com curiosidade o encarte do LP, enquanto escutava a bela canção. Tempo em que ainda era possível "degustar" o trabalho de um artista e eu ouvia com prazer e atenção tudo o que rolava em matéria de MPB. Por isso, optei pelo termo "acaso" no título deste post, com o intuito de fazer um trocadilho com a memória. De acordo com o site do Dicionário Michaelis, esse substantivo masculino tem como um dos significados possíveis acontecimento incerto ou imprevisível, casualidade. Também pode ser destino, fortuna, sorte.
Capa do CD "Recanto", lançado em 2011
Para quem lê sobre memória, sabe que o presente é fundamental na evocação do passado. Sendo assim, o acontecimento tem importância vital para a produção de sentidos. Ciente de que guardamos apenas algumas lembranças de cada época de nossa vida, a música tem uma presença muito forte na minha vida e, claro, no meu baú de recordações. Ela seria, então, o ponto de contato com o aspecto social da minha memória. As memórias não são individuais apenas. Elas se ligam à memória coletiva, como diz o sociólogo francês Maurice Halbwachs (1977-1945).
Para que a memória exista e se conserve, é preciso que esteja vinculada a algum grupo. Segundo Halbwachs (2004, p. 169, Tradução Nossa), "a memória dos homens depende dos grupos que a rodeiam e das ideias e imagens nas que os grupos têm o maior interesse". Desse modo, as nossas memórias não estão solitárias no mundo. Elas estão ligadas, de alguma forma, a outras pessoas também.
Memória e sociedade em Halbwachs
"A memória individual não é mais que uma parte e um aspecto da memória do grupo, como de toda impressão e de todo fato, inclusive naquilo que é aparentemente mais íntimo se conserva uma lembrança duradoura na medida em que se refletiu sobre ela; é dizer, se a vinculou com os pensamentos provenientes do meio social" (HALBWACHS, 2004, p. 174, TN). Só o fato de estar escrevendo aqui sobre Gal, o LP que ela gravou em 81, o show que ela está fazendo atualmente e a canção O Amor é uma forma de deixar viva a minha memória, a partir do momento em que eu compartilho meus escritos na internet.
Como um acontecimento imprevisível, essa lembrança da música foi quase que um acaso para mim. Seria uma ideia interessante de comparar minha recordação com alguma coisa que metaforicamente "caiu" na minha frente, já que o termo "acaso" vem do latim a casu, que, por sua vez, deriva de cadere (cair). Sendo assim, termino este post com um trecho do texto original do Maiakovski que inspirou Caetano Veloso e Ney Costa Santos e que bem poderia caracterizar poeticamente a função da memória nestas minhas reflexões:
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta
repelindo o absurdo cotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Vladimir Maiakovski em O Amor
Referências bibliográficas
HALBWACHS, Maurice. Los marcos sociales de la memoria. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 2004.