domingo, 28 de outubro de 2012

Matutanas


Quando eu estou sozinha no meu canto
Penso muito nas pessoas
Penso muito nos seus cantos
Penso o quanto foi difícil
Para cada um falar
E sinto o coração se confortar
E fico por um tempo - meio assim


Estar no entremeio e concretizar algo em fase de elaboração. Talvez esse seja o sentimento que melhor caiba no comentário desta semana. Tudo na cabeça ainda fluindo sem muita nitidez, apenas sensações no meio da estrada. Pequenos redemoinhos a espirar aqui e acolá no espaço de dentro. Por isso mesmo vem bem a calhar uma brincadeira neologística substantiva com a expressão matutar no título do post.

Bastante utilizado no Nordeste brasileiro, esse lindo verbo intransitivo (que não precisa de outro complemento para significar) deriva da palavra matuto, que quer dizer, em geral, alguém do mato, acanhado, desconfiado e até mesmo ignorante. Matutar, então, representa o ato de refletir, meditar, cogitar. "Parte do tempo esteve à janela, matutando", já escreveu Machado de Assis em Quincas Borba, ao tratar do personagem Rubião, ingênuo rapaz que se torna discípulo do filósofo que dá nome ao referido livro.


E penso em sentimentos meus
Penso em sentimentos
Quantos edifícios, quantas casas
Quanta gente dentro - como será...
Que sonhos terão
Será tudo em vão
Eu juro que não


Matutando sobre leituras que vêm mexendo comigo, desta vez, o pensador alemão Andreas Huyssen com o seu Passados presentes e sua análise a respeito da emergência da memória como uma das preocupações centrais da sociedade ocidental de hoje. Observado desde os anos 80 inicialmente na Europa e nos Estados Unidos, esse fenômeno sociocultural tirou de cena o futuro para colocar no lugar o passado como foco das atenções. Os projetos políticos e as ideologias de outrora caíram por terra, provocando uma nova lógica sensível do sujeito diante do mundo, juntamente com os avanços tecnológicos.

A obsessão contemporânea com o pretérito, que se visualiza numa difusão cada vez maior de práticas memorialísticas na cultura de modo geral, é consequência desse processo. Cultivar o passado significaria, em certa medida, uma forma de (re)afirmação do indivíduo frente a esse mundo. É claro que essa inferência é bem generalista e carece de maior aprofundamento. Por hora, comungo com a ideia do Huyssen (2001, p. 20), quando ele diz que o medo do esquecimento que acompanha a cultura da memória que vivenciamos atualmente é uma maneira de garantir a sobrevivência "em um mundo caracterizado por uma crescente instabilidade do tempo e pelo fracasso do espaço vivido".


E os morros vão ficando azuis
Sobre essa cidade
Sobre essa cidade
Eu já estou ficando pronta
Para viver a minha idadde
Para entender a liberdade
Para contar para os nossos filhos
Uma história de amor
E, até quem sabe, para fazer o amor
E é bem capaz da gente ser assim    


Diante da velocidade do tempo que se instaura e das próprias inovações técnicas que tornam o presente mais fugaz e até mais passado rapidamente, paro um pouco para matutar as imagens e os sons que passam pela janela. Não como Carolina, e sim como meteorológico observador. E aí nesse refletir, meio ignorante, meio tímido, meio cismático, meio profundo, vejo-me com uma música que tive a felicidade de escutar e conhecer ao vivo dias atrás no show Leila Pinheiro Canta Mulheres e admirar de prima. Foi essa canção que inspirou e alinhavou a costura "pré-matura" desta semana que vos escrevo.


E a tarde vai caindo em mim
Sobre essa cidade
E eu fico pensando assim
A Tarde vai caindo em mim
E eu fico pensando assim
 [ A Tarde, composição do casal Francis Hime e Olivia Hime ]




Cada nova ideia de autor, cada nova canção traz consigo uma nova imagem-reflexão que carece. Ínspira pura matéria flutuando no leito do pensamento, como notas que são tocadas uma a uma na base do instrumento, preparando a alma da memória para adentrar no rio. 


O que mais me comove, em música,
são essas notas soltas - pobres notas únicas -
que do teclado arrancam o afinador de pianos...
Mario Quintana em Meu Trecho Predileto,
extraído do livro Sapato Florido (Editora Globo, 2005)  



Referências bibliográficas
  • ASSIS, Machado de. Quincas Borba. 4. ed. São Paulo: Clube do Livro, 1980.
  • HUYSSEN, Amdreas. Passados presentes. In: Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.
  • QUINTANA. Mario. Sapato florido. 2. ed. São Paulo: Globo, 2005.