Há pequenas impressões finas como um cabelo e que,
uma vez desfeitas na nossa mente, não sabemos aonde
elas nos podem levar. Hibernam, por assim dizer, nalgum
circuito da memória e um dia saltam para fora, como se
acabassem de ser recebidos. Só que, por efeito desse
período de gestação profunda, alimentada ao calor
do sangue e das aquisições da experiência temperada
de cálcio e de ferro e de nitratos, elas aparecem já
no estado adulto e prontas a procriar. Porque as
memórias procriam como se fossem pessoas vivas.
Trecho do romance Antes do degelo (2004 - Guimarães Editores),
de Agustina Bessa-Luís, pseudônimo literário da escritora
portuguesa Maria Agustina Ferreira Teixeira Bessa
A memória é realmente um assunto que rende análises diversas e profundas. Consciência inserida no tempo, como diria o querido poeta português Fernando Pessoa, ela representa a faculdade humana de conservar ou retomar ideias ou imagens. Na mitologia grega, a memória (Mnemosýne) era uma das deusas da primeira geração, com a capacidade de preservar tudo o que ocorria ao longo do tempo, além de mãe das nove Musas, que tinham o poder tanto de revelar quanto de fazer esquecer. Eis, então, a síntese da memória: lembrança e esquecimento a atuarem como forças complementares.
Na nossa vida, seja ela individual ou social, a memória sempre está presente, dando significado, de certo modo, à existência. É a partir das relações feitas com o passado que o presente vai sendo melhor compreendido. Não quero dizer com isso que vivemos em função unicamente do pretérito, mas ele tem sua importância vital, especialmente quando tratamos do discurso jornalístico, que se retroalimenta de analogias com os fatos já ocorridos anteriormente para dar sustentação aos seus enunciados, mesmo que seja só para negá-los.
Agora em 2012, a cobertura dispensada pela imprensa aos 30 anos da morte da cantora Elis Regina (1945-1982) foi, ou melhor, está sendo, algo realmente impressionante. Até 19 de janeiro, dia em que se celebra o falecimento da artista, contabilizei 51 matérias publicadas em jornais e outras quatro matérias em revistas, das quais uma de um semanário de Portugal. Totalizando com o restante dos textos que saíram depois dessa data, foram 98 matérias em periódicos e 12 em revistas. Isso sem contar com as matérias veiculadas em televisões e sites, além dos programas de rádio, que perfazem uma quantidade bem maior de inserções sobre Elis na mídia.
Esquecimento e lembrança se unem para significar no tempo a memória sobre Elis |
Essa constatação torna-se ainda mais interessante se voltarmos ao passado. Nos 10 anos da morte de Elis, os meios de comunicação pareciam não ter o mesmo interesse em falar da cantora como hoje em dia. Naquela época, a memória parecia estar mais próxima do esquecimento. As manchetes da matéria de capa do Caderno 2 do Estado de São de Paulo no dia 19 de janeiro de 1992 ("Os dez anos em que o Brasil esqueceu Elis") e do texto publicado na editoria Ilustrada, da Folha de São Paulo, na mesma data ("Morte de Elis é mal lembrada dez anos depois") exemplifica um pouco do discurso em voga na época. Naquele mesmo ano, a própria biógrafa de Elis, a jornalista Regina Echeverria, declarava à imprensa que Elis estava esquecida, ao constatar uma diminuição nos eventos em nome da cantora, principalmente cinco anos após a sua morte.
Vinte anos depois, a situação se inverte e o esquecimento dá lugar a uma lembrança mais viva do que nunca. Manchetes publicadas este ano não faltam para indicar essa mudança:
- "Elis na parede da memória" (Pampulha - MG - 7 a 13 jan. 2012);
- "Memória é reforçada com shows, discos e exposição" (Folha de São Paulo - SP - 9 jan. 2012);
- "Elis eterna" (Gazeta de Alagoas - AL - 19 jan. 2012);
- "A voz que não morre" (O Popular - GO - 19 jan. 2012);
- "Elis revive" (Jornal de Santa Catarina - SC - 19 jan. 2012);
- "A voz inesquecível" (Diario de Pernambuco - PE - 29 fev. 2012).
Esse avivamento da memória tem a ver não só com o mito criado em torno de Elis ainda em vida e enfatizado após a morte precoce, mas também com as homenagens promovidas em seu nome. A mais recente, e também a mais 'robusta', partiu da família dela, com o anúncio de shows de Maria Rita (filha caçula de Elis), realização de exposição itinerante por algumas capitais brasileiras, documentário e lançamento de livro novo contando a trajetória da cantora. O anúncio do megaprojeto, ainda em 2011, fez com que a mídia ficasse atenta para isso, intensificando o noticiário.
Artisticamente, acredito que Elis esteja inserida no rol dos artistas que gozam de particular prestígio, capaz de "manter vivo o interesse que despertam" e "levar à busca do aprofundamento e da renovação do conhecimento", como diria o professor assistente doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) Wilton Carlos da Silva (2009). Pensando nele, as narrativas jornalísticas contribuiriam para o chamado "biografismo" de Elis, bem como uma forma de visualizar nitidamente o papel da memória na contemporaneidade.
Traçando um paralelo entre os campos da cultura e da saúde, poderíamos pensar também num biografismo sobre as doenças? Guardando as devidas singularidades e contextos diversos, acredito que sim. Falo com pouca propriedade, afinal seria necessário um aprofundamento sobre o que vem a ser biografismo nos estudos de memória. Porém, se observarmos o noticiário acerca da pandemia recente da gripe A(H1N1) em 2009, que trouxe à tona a memória da gripe espanhola do início do século XX, vemos que algumas doenças epidêmicas - encaradas quase que como "entes" - dialogam com os grupos sociais aos quais estão inseridos e são privilegiadas conforme o contexto, alterando a própria memória social. O que foi ontem pode não ser o mesmo hoje. Da mesma maneira, o que é hoje pode não ser o mesmo amanhã. Resta saber se o que foi ontem não será o mesmo amanhã. Bem, só o tempo é que vai nos dizer. Por hora, apenas a música é quem diz.
[ Trecho do show "Transversal do Tempo", apresentado por Elis Regina e César & Cia no Teatro Villaret, em Lisboa (Portugal), no ano de 1978. A música que aparece no vídeo é Nada será como antes, composta pela dupla Milton Nascimento e Ronaldo Bastos e gravada pela cantora em 1972 no LP "Elis" (Philips-atual Universal Music) ]
Referências bibliográficas
- BRITO, P. Elis na parede da memória. In: Pampulha, Belo Horizonte, 7 a 13 jan. 2012. Reportagem, p. 3.
- CONTENTE, R. Nunca houve outra Elis. In: Jornal do Commercio, Recife, 19 jan. 2012. Caderno C, p. 4.
- ECHEVERRIA, R. Furacão Elis. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Globo, 1994.
- FARIA, A. de; MENDES, T. Elis eterna. In. Gazeta de Alagoas, Maceió, 19 jan. 2012. Caderno B, p. B1.
- GARCIA, L. L. Os dez anos em que o Brasil esqueceu Elis. In: Estado de São Paulo, São Paulo, 19 jan. 1992. Caderno 2, p. 1.
- GIRON, L. A. Morte de Elis é mal lembrada dez anos depois. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 19 jan. 1992. Ilustrada, p. 5.
- IENSEN, J. Elis revive. In: Jornal de Santa Catarina, Blumenau, 19 jan. 2012. Lazer, p. 1,4 e 5.
- MAGIOLI, A. A voz inesquecível. In: Diario de Pernambuco, Recife, 29 fev. 2012. Viver, p. E6.
- PRETO, M. Memória é reforçada com shows, discos e exposição. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 9 jan. 2012. Ilustrada, p. E1.
- QUEIROZ, R. A voz que não morre. In: O Popular, Goiânia, 19 jan. 2012. Magazine, p.1.
- SILVA, W. C. L. da. Biografias: construção e reconstrução da memória. In: Fronteiras - Revista de História, v. 11, n. 20, jul./dez. 2009. p. 151-66.