sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O status do rosto na doença

A reflexão desta semana surgiu de um detalhe banal. No finalzinho da reportagem de capa da revista Veja sobre o câncer do ator global Reynaldo Gianecchini (edição 2235 - ano 44 - nº 38), o texto fez questão de ressaltar que o artista, mesmo de cabeça raspada propositalmente (antecipando os efeitos da quimioterapia), ainda continuava com a beleza intacta. Entre parênteses, a frase funcionou como um comentário dentro do próprio texto, uma espécie de texto paralelo. Achei pitoresco e, por isso mesmo, decidi analisar esse fato à luz da compreensão cultural que temos a respeito de doença.

Eis o trecho da reportagem:

Câncer do ator Reynaldo Gianecchini é capa de Veja


"Na quinta-feira passada, o ator apareceu pela primeira vez desde a alta hospitalar. Gianecchini passeou com a ex-mulher, a atriz Marília Gabriela, pelas ruas do bairro paulistano dos Jardins. No rosto, o sorriso aberto e a simpatia de sempre. Exibia a cabeça raspada, antecipando um dos efeitos externos da quimioterapia. A imagem do ator (sim, ele continua muito bonito) era de otimismo, confiança e serenidade"
[VEJA - No espírito da cura - edição 2235, ano 44, nº 38, 21 set 2011]



Jornalisticamente (e por que não dizer também culturalmente?), a referência à beleza do ator tem um sentido de ser. Conhecido como um dos galãs mais jovens da televisão brasileira, Gianecchini trabalha em cima da sua imagem pública, tanto a do corpo malhado quanto a do rosto bonito, dignos de alçá-lo à condição de símbolo sexual. Sendo assim, essa manutenção da imagem lhe é bastante cara; uma moeda de troca que vale dinheiro e confere status de celebridade a ele. Não seria de se espantar o fato de a Veja enfatizar aos leitores que ele continua "muito bonito", especialmente às fãs que o veneram e o desejam.

Imediamente eu me lembrei da escritora, ativista e ensaísta americana Susan Sontag (1933-2004). Nas suas análises sobre as metáforas e interpretações sobre as doenças na nossa sociedade, ela considerou o rosto como uma parte privilegiada do corpo, importante para constatação da "beleza ou da ruína física" de um indivíduo. Para tanto, ela tomou como referência as imagens dos santos cristãos em que a expressão do martírio do corpo não condizia com a aparência do rosto. Para Sontag, havia um abismo surpreendente entre os dois, já que o rosto muitas vezes demonstrava não sofrer diante das atrocidades sofridas pelo corpo. "O próprio conceito de pessoa, de dignidade, depende da separação entre rosto e corpo, da possibilidade de que o rosto esteja isento - ou que ele próprio se isente - do que está acontecendo com o corpo", avaliou a escritora. 

Sabemos que nem todas as doenças provocam o mesmo sentimento diante dos efeitos sobre o rosto e o corpo. Os males do coração e a gripe, exemplificou Susan Sontag, não causam terror profundo nas pessoas por não danificarem o rosto. Na avaliação dela, as doenças mais temidas são aquelas que, de certa maneira, "animalizam" o doente (o "rosto leonino" do leproso - ou, como preferem as autoridades públicas brasileiras numa assepsia sui generis mundialmente,- do hanseniano) ou que conotam putrefação (a exemplo da sífilis ou da própria Aids no início da epidemia, quando o tratamento ainda não dava conta de proteger o organismo dos pacientes à ação do HIV).  

Câncer de mama influenciou obra de Susan Sontag
"`Por trás de alguns dos juízos morais feitos em relação às doenças, encontram-se juízos estéticos a respeito do belo e do feio, do limpo e do sujo, do conhecido e do estranho ou insólito. [...] Mais importante do que a intensidade do desfiguramento é ele refletir um processo subjacente e progressivo de dissolução da pessoa. A varíola também desfigura; mas as marcas que ficam não pioram. Pelo contrário: são justamente as marcas do sobrevivente. Já as marcas no rosto do leproso, do sifilítico, do aidético assinalam uma mutação, uma dissolução progressiva; algo orgânico."
Susan Sontag no livro Aids e suas metáforas (São Paulo: Companhia das Letras, p. 49, 1989)



Evidentemente, é preciso considerar o contexto em que a análise da Sontag foi feita. Fim dos anos 80, em pleno auge da Aids no mundo. O aparecimento dessa "nova"  doença sexualmente transmissível fez o mundo reviver o medo da desfiguração do corpo e do rosto, assim como havia ocorrido com a lepra e a sífilis em séculos anteriores, só que desta vez sob holofotes midiáticos. Semelhante às antigas pestes do passado, a Aids era interpretada como sinal de castigo divino, ressuscitando a intolerância e o preconceito, além de revelar publicamente a imagem negativa do doente, que se consumia em direção à morte inevitável, pondo em xeque o aparente controle que parecia haver sobre as doenças infecciosas.

Num contraponto à imagem positiva e bela do Gianecchini careca, podemos lembrar da imagem negativa e "em decomposição" do compositor e cantor Cazuza (1958-1990) estampada na capa da mesma Veja pouco antes de morrer. Em 24 de abril de 1989, o semanário estampava a fotografia do roqueiro com um semblante magro e coloração de pele diferente da normal, possivelmente consequência dos efeitos da Aids e da medicação utilizada na época para controlar a doença. Um exemplo público em que se via/lia o drama pessoal de um artista de renome e a visão do processo de adoecimento, da transfiguração explícita do rosto e do organismo como um todo e da luta contra a morte.

Drama da Aids em Cazuza é capa de Veja em 1989 
Embora guardadas as diferenças entre o câncer e a Aids ontem e hoje, os discursos produzidos pela imprensa revelam a importância dada ainda hoje ao rosto. Os exemplos de Gianecchini e Cazuza em Veja são exemplares nesse sentido. Na verdade, o que está por trás da preocupação com o rosto e com a beleza em si é o medo da morte. A doença significaria uma ameaça à vida. No caso do câncer, mesmo com todo o avanço da medicina, o temor ainda é visivelmente concreto, apesar de numa escala menor, se compararmos com a situação da doença no passado. Diferentemente da tuberculose, que trazia consigo uma ideia de lirismo e refinamento (a poesia romântica do século XIX está aí para provar), o câncer é visto, muitas vezes, como um mal potencialmente doloroso e, por isso mesmo, temível.


Na reportagem sobre o câncer de Gianecchini, a Veja também fala do ator e modelo galês radicado na Austrália Andy Whitfield (1972-2011), que faleceu dias atrás, em 11 de setembro, em decorrência do mesmo grupo de tumores que acomete o artista brasileiro, um linfoma não Hodgkin T que ataca o sistema linfático. Neste momento, os holofotes da imprensa para o assunto seriam mais que pertinentes, dada a atualidade da morte. Por isso mesmo, o comentário à beleza "intacta" do Gianecchini torna-se mais compreensível. A meu ver, o rosto significaria metaforicamente o locus de resistência pública do ator na luta contra o câncer, sempre pensando na velha concepção de embate entre o indivíduo contra a doença "inimiga" que o aflige. Uma força estética que representaria, mais profundamente, uma experiência histórica e filosófica do homem enquanto ser no mundo.