sábado, 19 de janeiro de 2013

Elis, Mídia e Memória, Sempre-Vivas


Largo Elis Regina - Vila do IAPI - Bairro Passo d'Areia - Porto Alegre (RS)

Essa lembrança talvez nem seja nossa,
mas de alguém que, pensando em nós, só possa
mandar um eco do seu pensamento
nessa mensagem pelos céus perdida
Mário Quintana em "A Cor do Invisível" 


Não estava pensando em escrever comentário esta semana. Mas um breve post no Facebook escrito por mim sobre a cantora Elis Regina me fez bater o desejo inesperado de desenvolver um pouco mais sobre o comentário no meu blog. Para "variar", a memória é o fio condutor das reflexões, afinal é o conceito que mais mexe com a minha cabeça em função do doutorado. E por que Elis? Porque ela representa um case bastante interessante de como a memória a respeito de um ídolo musical significa na nossa cultura.

Falecida em 19 de janeiro de 1982, Elis marcou a música. Ainda hoje é considerada a maior cantora brasileira. A morte polêmica, provocada pela overdose de cocaína e álcool, arregimentou uma legião de fãs e admiradores, mostrando o quanto era querida pelo país. O seu velório atraiu cerca de 25 mil pessoas ao extinto Teatro Bandeirantes, em São Paulo. O Corpo de Bombeiros foi acionado para levar o seu caixão até o Cemitério do Morumbi, onde foi enterrada. Milhares de pessoas seguiram o cortejo a pé e outros tantos renderam homenagens no trajeto, jogando flores e papel picado das janelas dos edifícios.

Na época, a TV Globo acionou um helicóptero para fazer a cobertura do cortejo. Apesar de ser algo comum hoje, na época, a estratégia era arrojada, indicando a força de Elis. As demais emissoras de televisão, bem como jornais e revistas, renderam bastante espaço para tratar da morte da cantora. Antes dela, somente Francisco Alves e Carmem Miranda tinham causado tanta comoção nacional. Logo Elis, que era taxada por alguns críticos de música como uma cantora de elite... Por ser uma cria da televisão dos anos 60, justamente num momento de consolidação desse tipo de veículo, e por ter trilhado a carreira também pela TV, a popularidade da Pimentinha se mostrou mais forte do que se poderia supor. Tudo isso somado ao seu temperamento forte, à voz inconfundível e ao repertório de peso gravado ao longo da vida contribuiu para torná-la, nas palavras da própria imprensa, uma espécie de repórter do seu tempo, auxiliando na construção de uma identidade relevante. 




Uma trajetória tão marcante não poderia resultar em outra coisa a não ser saudade. Por isso, a memória em torno dela suscita uma leitura muito particular. Mesmo com momentos mais mornos, como no início da década de 90, quando parecia ter sido esquecida, Elis sempre foi motivo de pautas jornalísticas. A partir dos 20 anos de sua morte, a situação mudou de figura. Recentemente, em 2012, seu nome voltou à cena em razão das comemorações organizadas pelos filhos João Marcello, Pedro Mariano e Maria Rita em homenagem à mãe. Juntamente com os 30 anos da morte, que por si só costuma gerar cobertura, bem ao gosto das datas comemorativas, os novos projetos estimularam mais de uma centena de pautas nos veículos, alimentando ainda mais as lembranças em torno da cantora.

Ao falar sobre Elis, a mídia contribui para tornar viva a memória, além de se reafirmar como um lugar de memória na contemporaneidade, trazendo à tona um termo cunhado pelo historiador francês Pierre Nora. Lugar de aparência material e de constituição de arquivos de monta, além de configuração de uma aura simbólica sobre si mesma, garantindo a cristalização das lembranças e, principalmente, a veiculação delas para a sociedade. Lugar também de legitimação dos meios, estabelecendo um pacto simbólico com a audiência de autoridade na representação do conhecimento sobre a cantora. Espaço de poder.

A internet é um bom exemplo desse lugar de memória na atualidade. No Google, existem hoje, 3,4 milhões de links a respeito de Elis. O Youtube registra 43 mil resultados com o seu nome. Evidentemente que nem tudo term a ver com Elis. Mas é verdade que um bom acervo já foi constituído nos últimos anos com textos, imagens e áudios da cantora em sites e blogs, oportunizando o acesso da informação, sobretudo, para as novas gerações que nasceram após 1982 e não tiveram a chance de vê-la ao vivo.


Acervo Elis Regina - Casa de Cultura Mário Quintana - Porto Alegre (RS)

Inspirado nas reflexões do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), Pierre Nora considera que a moderna memória está ligada aos arquivos. Nesse sentido, a vivência de parte importante dessa memória vem sendo feita coletivamente na virtualidade das tecnologias, e não mais entre grupos físicos, como em tempos antigos. Eis aí a simbologia dos meios de comunicação na preservação das lembranças. Por isso, neste 19 de janeiro de 2013, fica difícil pensar em 31 anos "sem" Elis, já que essa preposição indica ausência, exclusão. A matéria pode até não estar presente entre nós. Porém, a memória, essa parece estar mais presente do que nunca. Mais adequado, então, seria dizer, 31 anos "com" Elis.

Poderia ficar aqui desenvolvendo mais, já que Elis se configura num ponto de partida para muitas reflexões. Mas, dada a extensão deste post, finalizo-o com o texto do escritor Luís Fernando Veríssimo publicado no jornal Zero Hora de Porto Alegre (RS), em 19 de janeiro de 1983, um ano após a morte de Elis. Acho que exprime e arremata bem o sentido da memória em relação à nossa querida Pimentinha e indiretamente num sentido mais amplo:


A voz continua, viva e límpida.
Continua nos discos e nas fitas. E continua, ainda mais límpida e mais viva, na nossa memória.

O resto é como um desenho feito a lápis, sem fixador, que vai se apagando com o tempo. O que ela fez, o que ela disse, o que disseram dela...

A voz não se apaga. O disco pode arranhar, a fita pode gastar, mas a voz que a gente guarda na memória continua tão nítida que até atrapalha: não podemos ouvir outra cantora sem ouvir, junto, a voz dela, e comparar. É covardia. Ninguém mais canta como ela.
Era uma baixinha complicada.
Uma pimenta, planta miúda e ardente. Tinha de saber como lidar, senão ela queimava. Morreu e se transformou num milagre de botânica.
Hoje é uma flor que a música brasileira usa atrás da orelha.
E o seu nome é sempre-viva.
Ela usava a voz como um instrumento.
Ela era isso, um instrumento de sopro. Como o piston, que também é pequeno e difícil mas canta como um anjo.

Só que os instrumentos, bem cuidados, duram cem anos.
E ela não se cuidou. Acabou antes do tempo.
Mas a voz continua, viva e límpida.
Continua nos discos e nas fitas. E ainda mais viva e límpida na nossa saudade
Luís Fernando Veríssimo em "Sempre-Viva!"


ELIS EM TEMPOS E ESPAÇOS DIVERSOS:
Lúcia Esparadrapo / Mudei de Ideia / Você Abusou / Mas que Doidice / Desacato (Antônio Carlos e Jocafi)


Rosa Morena (Dorival Caymmi)


Corcovado (Tom Jobim)


Canção do Sal (Milton Nascimento)


Plataforma (João Bosco/Aldir Blanc)


Ilusão à Toa (Jonnhy Alf)


"Ninguém está mais vivo que Elis Regina. Influência, exemplo, paradigma, deusa, musa. Seu legado humano e artístico é de tal ordem que, a alegria de tê-la conhecido sobrepuja o luto. [...] Ouvir Elis é para sempre."
Aldir Blanc 

2 comentários:

  1. Marcelo, não faz isso não... Vc escreve desse jeito e a emoção sobe ao topo do topo. Desde a escolha de Mario Quintana até... Ai, Sempre-viva, né! Viva Elis!

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  2. É isso, aí, Tânia. Realmente, não pude resistir. Demorou um pouco mais que o previsto, mas o texto saiu. Viva Elis! Fonte de inspiração. Sempre-Viva!!

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