sábado, 12 de outubro de 2013

Nas asas presentes da imaginação



"Todas as pessoas grandes foram um dia crianças. Mas poucas se lembram disso" 
Saint-Éxupery

Nesta última semana que precedeu o Dia da Criança (12 de outubro), choveram postagens no Facebook de amigos, colegas e amigos e conhecidos de amigos com fotos de quando eram pequenos. Foi um fenômeno interessante de se observar, quase como um efeito em cascata: a cada dia, mais e mais pessoas resgatavam de seus arquivos pessoais fotos da infância para postar nos seus perfis e receber as esperadas curtidas, como que impulsionados pelas postagens dos outros. Nada mais sintomático, tendo em vista a imersão em que vivemos numa cultura de memória.

É evidente que esse compartilhamento de lembranças não é novo no Face. Histórias e fotos antigas fazem parte das práticas cotidianas da/na rede. Integram o uso social desse tipo de tecnologia, sendo o tempo atual a chave para compreensão do papel da memória no nosso mundo contemporâneo, conforme aponta a professora de Comunicação e historiadora Ana Paula Goulart Ribeiro (2013, p. 71, grifos da autora). "Porque somos instados a lembrar - talvez por ansiedade em relação ao presente e medo do futuro - é que todos nós nos tornamos historiadores de nós mesmos (como afirmou Pierre Nora*) ou homens arquivísticos (segundo a expressão de Fausto Colombo**)", explica a autora.

Para Ana Paula, o culto do passado está presente na sociedade como um todo, tendo maior visibilidade nos meios de comunicação, especialmente com o advento da internet, que democratizou o processo de arquivamento das experiências e do passado, antes circunscrito apenas a determinadas instituições e grupos, como a Igreja e o Estado. Não é de se estranhar, então, o uso do Facebook como lugar de armazenamento e registro público dessa memória nesse processo de alargamento, com a intenção das pessoas de assegurarem vínculos e experiências virtuais, legitimando, com isso, as próprias identidades sociais a partir das suas recordações imagéticas-textuais nas nuvens.

Embora não tenha querido inicialmente postar uma foto quando criança na minha página do Face, fiquei muito inspirado com as diversas imagens compartilhadas por todos na rede. E aí comecei a lembrar da minha própria infância e tentar dar a minha contribuição diferenciada nesse processo. Para "variar", lancei mão da música como forma de marcar o meu Dia das Crianças. Sempre permeado pelas canções desde muito pequeno, ela simboliza o que há de mais marcante e profundo, talvez por tocar sensorialmente a alma e o coração.

Acabei escolhendo Lili (Hi Lili, Hi Lo), uma música linda e singela que conheci lá pelos meus oito anos de idade, no disco do grupo infantil Trem da Alegria, na voz da cantora Gal Costa e do músico Moreno Veloso, filho do compositor Caetano Veloso. Versão em português do carioca Haroldo Barbosa, essa canção foi composta pelo polonês Bronislau Kaper (música) e o americano Helen Deutsch (letra), tendo integrado a trilha sonora do filme Lili, de 1953, estrelado pela atriz Leslie Caron e com direção de Charles Waters.

Para este post, optei pela cena de Lili em que a Leslie canta Hi Lili, Hi Lo com um fantoche, além do registro ao vivo feito por Gal, em 1984, durante a turnê do seu show Baby Gal, no qual ela canta e ainda coloca algumas pessoas da plateia para entoarem junto. É um vídeo muito simpático pela evocação que faz da infância, seja pelo arranjo doce apenas com a voz aguda da cantora mais os teclados, despertando os tempos de infância, seja pela própria canção, que fez parte do imaginário de crianças do mundo ocidental desde meados do século 20. Por isso, as desafinadas do público no registro da Gal soam até simpáticas e combinam bem com aquele/este momento de rememoração. Feliz Dia das Crianças!


Cena do filme Lili (1953)


Registro do show Baby Gal (1984)



"Não quero adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto;
e velhos, para que nunca tenham pressa."
Oscar Wilde


* Pierre Nora (1931) é historiador francês, conhecido pelos seus trabalhos sobre memória e com o nome ligado à Nova História, corrente que questionava a visão positivista da História e propunha um novo olhar sobre o tempo histórico, configurado a partir de ritmos diferentes para os acontecimentos e a aproximação com outras disciplinas das Ciências Sociais.

** Fausto Colombo (1955) é professor de Teoria e Prática da Mídia e Mídia e Política da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade Católica de Milão, na Itália. Analista da memória social face a cultura eletrônica, ele estuda a paixão arquivística observada na atualidade através da tecnologia no contexto coletivo e na vida cotidiana.



REFERÊNCIAS

  • LOGULLO, E. Gal Costa Biografia: 1984. São Paulo, 2005. Disponível em: <http://www.galcosta.com.br/sec_biografia.php?id=33>. Acesso em: 12 out. 2013.
  • RIBEIRO, A. P. A memória e o mundo contemporâneo. In: RIBEIRO, A. P.; FREIRE FILHO, J.; HERSCHMANN, M. (Orgs.). Entretenimento, felicidade e memória: forças moventes do contemporâneo. Guararema, SP: Anadarco, 2013. p. 65-84.

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