quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Navegantes I


"Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu"
Fernando Pessoa

A mitologia faz parte da vida ocidental há milhares de anos, com a função de significar e interpretar a cultura de um povo. Histórias populares ou religiosas, os mitos são narrativas que costumam explicar a origem de alguma cultura, do mundo e do próprio universo. A mitologia greco-romana, junção das religiões grega e romana pela semelhança nas tradições dentro outros aspectos em comum, é uma das mais simbólicas, a narrar histórias de deuses e semi-deuses, com poderes além dos seres humanos, nós, os "pobres mortais".

Senhores da natureza, essas divindades possuíam forças sobrenaturais, apesar da semelhança física com o homem. Suas lendas são lembradas até hoje, tendo influência em vários campos, como a matemática e a filosofia. Na arte, a mitologia foi pano de fundo para a criação de várias obras desde tempos antigos. O mito do Orfeu e da Eurídice é um dos mais conhecidos e inspiradores de poetas, escultores, pintores e compositores.

A lenda conta a história de amor entre Orfeu, considerado o músico mais talentoso dentre todos, e Eurídice, uma ninfa da floresta que morreu após ser picada por uma serpente, ao tentar fugir de um pastor que muito a admirava. Desesperado, Orfeu desce ao mundo dos mortos na tentativa de resgatar a sua amada. Tendo a permissão para levá-la de volta, Orfeu sai guiando a sombra de Eurídice pela trilha com a condição de não olhar para trás.

Quadro "Orfeu guiando Eurídice do submundo", de Jean-Baptiste Corot
Porém, perto de chegar à saída do reino dos mortos, ele não resiste e se vira para Eurídice, que é carregada novamente para o mundo da escuridão. Perseguido pelas mulheres durante o resto de sua vida, Orfeu acabou morrendo tempos depois, devido ao ódio das bacantes (sacerdotisas de Baco, deus do vinho e das festas), que o desejavam e tentavam de tudo para conquistar o seu amor, devido à atração que ele exercia com a sua bela música triste.

No Brasil, a história de Orfeu e Eurídice inspirou o poeta e diplomata Vinicius de Moraes. Em 1954, ele escreveu a peça teatral Orfeu da Conceição, uma adaptação do mito grego à realidade das favelas cariocas. Nela, o Orfeu se transforma num sambista, filho de um músico com uma lavadeira, e Eurídice, uma moradora do morro onde ele vivia. O interesse pelo musical acabou gerando, cinco anos depois, em 1959, o filme ítalo-franco-brasileiro Orfeu Negro (também conhecido como Orfeu do Carnaval), Palma de Ouro, em Cannes.

O poeta e compositor Vinicius de Moraes
Apesar de não fazer parte da trilha sonora original da peça, Valsa de Eurídice é claramente inspirada no mito de Orfeu e Eurídice. Uma das canções compostas unicamente por Vinicius (mais conhecido como letrista apenas), ela reflete a melancolia da perda, pela saudade e a falta da amada. Embora conheça essa canção desde os meus seis anos de idade na voz da cantora Elis Regina no registro ao vivo do seu derradeiro show, Trem Azul (1981), só na semana passada me veio à mente a correlação entre a música e o mito greco-romano durante uma conversa com um amigo muito querido sobre a sua avó paterna, a D. Eurídice.

De imediato, lembrei-me da canção do Vininha e, em seguida, do referido mito. Como o comentário desta semana tem a ver com memória, assim como outros tantos que já escrevi nestes dois anos e meio de blog, decidi dedicar este post ao grande Vinicius de Moraes (que, em 2013, completaria 100 anos, se estivesse vivo), a Elis, aos milenares contos que englobam a história da nossa humanidade, ao meu amigo Márcio e à saudosa avó Eurídice, que, na sua aparente simplicidade, acabou cativando o imaginário do neto desde a mais tenra idade. Nada melhor, então, do que coroar essa ligação com poesia e música...

"Para eso fuimos hechos:
para recordar y ser recordados
para llorar y hacer llorar
para enterrar a nuestros muertos.
Por eso tenemos brazos largos para los adioses
manos para recoger lo que fue dado
dedos para excavar la tierra"
Vinicius de Moraes em Poema de Navidad 




"Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
e a minha alma a lenha desse fogo"
Fernando Pessoa em Navegar é Preciso




"Tudo vale a pena se a alma não é pequena."


2 comentários:

  1. Gostei desse post! E terminando com Valsa de Eurídice por Elis, muito sensível e sempre muito bem escrito. Abraço
    1

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  2. Que bom que tenha gostado, Tânia! Na verdade, na verdade mesmo, tudo começou com a música, que me remeteu ao mito. Só que na ordem do texto, ela acabou fechando. Acho que foi mais interessante assim, pois deu a amarração final à ideia. Fico contente que acompanhe o blog. Sempre com delicadeza nos comentários. Obrigado! Abraços

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