"O organismo comporta inúmeras possibilidades de doença para uma única de saúde."
Carlos Drummond de Andrade
Há cerca de um mês, eu me deparei meio sem querer num sebo aqui do Rio de Janeiro com um anúncio antigo, do final dos anos 60, publicado na Revista Seleções do Reader's Digest que muito me chamou atenção. Era uma peça publicitária da Campanha Nacional de Combate ao Câncer trazendo a cantora Elis Regina (1945-1982) como garota propaganda. A finalidade era enfatizar a prevenção contra o câncer. Considerada pela propaganda "a maravilhosa intérprete da nossa música" e "autêntica representante da graça e da beleza da mulher brasileira", a artista era convocada para orientar as leitoras sobre os riscos da exposição exagerada e contínua ao sol.
Vedete de uma época, Elis enquadra o rol de artistas brasileiros que Edgar Morin (2002) consideraria como "olimpianos modernos". Espécie de semideuses que encarnam uma dupla natureza - divina e humana -, esses olimpianos revelam a decomposição do sagrado, especialmente diante da pressão da realidade informativa e do realismo imaginário à qual estamos expostos, segundo o autor francês. Nas publicidades, bem como nas matérias jornalísticas, as celebridades, que incluem políticos, jogadores, atores e outras pessoas públicas, servem para concretizar publicamente a doença, devido ao apelo provocado pelo famoso. A intenção é humanizar um assunto como esse, tão árido muitas vezes.
Para "vencer o câncer", o anúncio enumera diversos sinais que devem ser observados e informados imediatamente ao médico, que vão desde emagrecimento sem motivo, perda anormal de sangue, sinal que cresce no corpo e distúrbios permanentes no estômago ou intestino até tosse "rebelde" e rouquidão "tenaz", adjetivos curiosos quando lidos hoje em dia. O discurso de guerra era - e ainda é - bem marcante nas comunicações referentes a doenças, com o uso de metáforas bélicas. Influenciado pelo contexto de guerras, esse tipo de discurso lança mão de termos comuns ao campo militar, tais como "guerra", "luta", "batalha" e "inimigo", a fim de convocar a população para o controle.
Anúncio de combate ao câncer com a cantora Elis Regina publicado na Revista Seleções nos anos 60 |
Ao ver o anúncio, logo me lembrei do livro O Imperador de Todos os Males: Uma Biografia do Câncer (Companhia das Letras, 2012). Escrito pelo oncologista indiano Siddhartha Murkerjee e ganhador do Prêmio Pulitzer de 2011 na categoria não-ficção, a obra busca construir uma crônica dessa doença tão antiga, com cerca de 4 mil anos. Uma enfermidade "outrora clandestina", como ele mesmo diz, "sobre a qual se falava aos sussurros - que se metamorfoseou numa entidade letal, amplamente predominante e que muda de forma, imbuída de tão potência metafórica e política que costuma ser descrita como a peste definidora da nossa geração" (2012, p. 13).
Partindo da experiência na pós-graduação em imunologia do câncer e no treinamento em oncologia realizado no Dana-Faber Cancer Institute, em Boston, nos Estados Unidos, Siddhartha transforma o câncer num ator social concretizado através de vários fatores que compõem o enredo da doença. Por trás dessa licença poética, o objetivo é saber se a morte e a erradicação do câncer serão possíveis no futuro. Difícil indagação, sobretudo pelo caráter múltiplo e complexo da enfermidade, que conta hoje com mais 200 tipos de cânceres e 500 subtipos histológicos (os diferentes tipos de um mesmo tumor).
Cartaz da campanha da Associação Paulista de Combate ao Câncer (SP) nos anos 40/50 |
"É o câncer que desempenha o papel de enfermidade cruel e furtiva, um papel que conservará até que, algum dia, sua etiologia se torne tão clara e seu tratamento tão eficaz quanto se tornaram a etiologia e o tratamento da tuberculose", previu a escritora Susan Sontag, em 1978, no célebre ensaio A Doença como Metáfora. Para a ativista americana, ela própria vítima de um câncer nos anos 70 e falecida em 2004, o câncer é uma doença polêmica, usada para propor novos padrões de saúde individual e exprimir um descontentamento para com a sociedade. "As metafóras da doença são usadas para julgar a sociedade, não como desequilibrada, mas como repressiva", explica.
Não à toa, a Aids, denominada no início da pandemia, de "câncer gay", impulsionou uma ressignificação semântica pelo fato de as duas doenças guardarem entre si algo de tenobroso e intrinsicamente degenerativo na forma de acometer o corpo, além do pouco conhecimento que se tinha sobre elas. Nada mais instigante observar/investigar/analisar a doença no meio sociocultural, não apenas pelos diferentes jogos de sentido formados ao longo do tempo, como também pelos vários - e, algumas vezes, semelhantes - significados que ela adquire ao longo do Tempo, evidentemente respeitando os contextos variados.
"A memória cola fragmentos de várias porcelanas no mesmo vaso"
Carlos Drummond de Andrade
REFERÊNCIAS
- MORRIN, E. Cultura de massas no século XX: neurose. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
- MUKHERJEE, S. O imperador de todos os males: uma biografia do câncer. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
- SONTAG, S. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Graal, 2002.
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