sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A parte que nos (a)parte

- Qual será a parte que nos cabe?
- Será que cabemos todo na parte exposta?
- Ou serão as outras partes que nos cabem realmente?


Apesar de parecerem meio sem sentido, as questões que abrem este post pretendem lançar uma reflexão sobre a questão da imagem da doença. Já há algumas semanas, venho pensando muito sobre o assunto, mas de forma embrionária ainda, tentando traçar um paralelo com a forma como as enfermidades são vistas e compreendidas pelas pessoas a partir da simbologia das imagens criadas socialmente. Pode parecer mais louco ainda, mas isso surgiu forte na minha cabeça com a morte da cantora Amy Winehouse (1983-2011), em julho passado. No final de sua carreira, Amy ficou marcada como uma artista que vinha lutando contra as drogas e a bebida, mas de forma um tanto trágica. Muitos fãs iam a seus shows já com a expectativa de saber se ela conseguiria cantar o show inteiro, devido à exposição do vício, como ocorreu este ano com os espetáculos aqui no Brasil.

Embora fosse uma artista de potencialidade vocal e um talento nato invejável, Amy acabou marcada no final da carreira através da mídia por uma má fama causada pelos vexames públicos nas suas apresentações. Era como uma morte anunciada ainda em vida. A cobertura do falecimento foi um retrato fiel da imagem de uma artista jovem que morreu jovem, aos 27 anos, assim como outros astros do rock and roll, a exemplo de Jim Morrison, Janis Joplin e Jimi Hendrix, "vítima" das drogas e da bebida. Sua morte serviu para alimentar a mídia de matérias e mais matérias sobre os riscos do vício, tomando-a emblemática. O mais interessante é verificar como fatos dessa natureza fazem valer a memória jornalística, no eterno retorno às lembranças e ao jogo de sentidos. Com Elis Regina e Cássia Eller, também houve algo semelhante por parte da mídia, guardadas as devidas diferenças e proporções. Por isso, gosto do esquecer e do lembrar discursivo, pois vemos como a vida funciona em determinadas ocasiões como ciclos de idas e vindas, uma espécie de porvir inesperado-esperado, ainda mais em se tratando do discurso midiático.



Cantora Amy Winehouse, que morreu em julho de 2011 por ingestão de drogas e álcool 


Taxar a Amy como uma cantora que sucumbiu ao vício é rogar-lhe uma imagem que possivelmente a acompanhará pelo resto dos tempos. Não que isso seja uma inverdade, muito pelo contrário. Mas apenas uma forma de consolidar uma imagem após a morte que foi se formando ainda em vida - embora caiba aqui um parêntese que nem sempre determinado fato marca a imagem de alguém ou de alguma coisa, depende do contexto e da trajetória. De toda maneira, a imagem tende a reduzir o todo pela parte, uma "sinédoque discursiva" que imprime um valor globalizante a partir de um pequeno extrato que se torna representativo. Por isso, o título deste post "a parte que nos (a)parte" veio bem a calhar. Porque é reduzindo ao mínimo que podemos compreender ao máximo, dando um sentido utilitário às coisas que nos rodeiam, tendo como ferramenta a linguagem.

A respeito da imagem das doenças, penso aqui em alguns exemplos, como a Aids no início da epidemia nos anos 80, quando era taxada de "a doença dos homossexuais, dos drogados e das prostitutas", os famosos grupos de risco que facilitam a identificação. Hoje, mesmo a doença tendo mudado o perfil, essa imagem  persiste em alguma medida, com menos força evidentemente, mas ainda está presente na nossa cultura.



No início da epidemia, a Aids era denominada como "peste gay"


Outro exemplo é a gripe A(H1N1), comparada no início da pandemia à virulência da sua parente antiga, a gripe espanhola, que dizimou, pelo menos, 22 milhões de pessoas entre 1918 e 1919, mais que os oito milhões mortos na Primeira Guerra Mundial. Neste caso específico, porém, a imagem criada da gripe suína se modificou a partir do comportamento epidemiológico da nova virose, que mostrou uma face bem mais branda que a esperada. No entanto, vimos que restava na memória uma imagem viva, apesar de aparentemente morta, de algo sinistro capaz de afetar a nossa saúde. Então, fiquei pensando mais profundo e metaforicamente que, em tempos de saúde e vida "eterna" a todo custo, "jacaré" não se esquece nunca de nadar de costas com medo das "piranhas"...

Bem, para finalizar esse fragmento de reflexão alinhavando a questão da imagem com a parte, convido-os a escutar o poema de Ferreira Gullar Traduzir-se, musicado pelo compositor cearense Fagner. Uma forma de pensar na imagem como tradução.


- Mas que tradução? 



Traduzir-se, poema de Ferreira Gullar musicado por Fagner e gravado primeiro pela cantora Nara Leão, em 1981, no seu LP "Romance Popular" (Polygram/atual Universal Music), com a participação especial de Fagner; logo depois, ainda no mesmo ano, por Fagner no seu oitavo disco de carreira, intitulado"Traduzir-se" (CBS/atual Sony Music); e, em 2001, pela cantora e compositora Adriana Calcanhoto, no DVD "Público" (Sony/BMG)  

2 comentários:

  1. Elis, Amy... o que dizer? Nada.
    O óbvio já escutei demais. Tenho minhas concepções em relação a Elis. Amy só conheço os "rodopios".
    Mas que elas viveram sem limites, discordo plenamente. Falar; com muito cuidado.

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  2. Consuelo, em momento algum, eu quis dizer que Elis e Amy viveram sem limites. Não foi isso que me fez lembrar da Elis e da Cássia ao tratar da Amy, e sim da forma como a mídia aproveitou a morte para tratar das drogas, de forma um tanto moralista. Não estou defendendo as drogas, mas criticando a forma como determinados sentidos são criados a partir da ocorrência de alguns fatos. A parte que nos aparte é justamente a imagem construída a partir de um viés da personalidade do artista ou do assunto de saúde abordado, como se essa parte foi totalizante, sobretudo para a mídia. Amy é o melhor exemplo disso. Espero que você e os demais leitores tenham compreendido de fato o que quis dizer. É bem mais profundo, pois tem a ver com semiótica, com discurso.

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