sexta-feira, 29 de abril de 2011

Anômalo e anormalidade

As aulas deste primeiro semestre no Programa de Pós-graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS), vinculado ao Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT/Fiocruz) têm sido muito interessantes. Todas, de alguma forma, trazem uma reflexão diferenciada e instigante no campo interdisciplinar da comunicação, da informação e da saúde. No caso do professor Carlos Estellita, a aula em que ele tratou das contribuições de Georges Canguilhem (1904-1995) para a filosofia moderna trouxe à tona em mim, mais uma vez, a questão da "anomalia" e do "anormal", duas questões discutidas pelo médico e filósofo francês.


Médico e filósofo, Canguilhem se inscreve na epistemologia histórica francesa


Segundo observação feita por Canguilhem no seu livro O normal e o patológico - fruto da sua tese de doutorado em medicina -, "anomalia" é um substantivo que, no francês (anomalie), carece de adjetivo, enquanto que o adjetivo "anormal" (ou anormal, em francês), por sua vez, não tem substantivo na língua francesa, provocando uma aproximação errônea entre os termos. Eis o que diz o filósofo na obra citada, tomando como base o livro Vocabulaire philosophique, de Lalande:


"O Vocabulaire de Lalande explica que uma confusão de etimologia contribuiu para essa aproximação de anomalia e anormal. Anomalia vem do grego anomalia que significa desigualdade, aspereza; omalos designa, em grego, o que é uniforme, regular, liso; de modo que anomalia é, etimologicamente, an-omalos, o que é desigual, rugoso, irregular, no sentido que se dá a essas palavras, ao falar de um terreno. Ora, frequentemente houve enganos a respeito da etimologia do termo anomalia derivando-o não de omalos, mas de nomos que significa lei, segundo a composição a-nomos. Esse erro de etimologia encontra-se, precisamente, no Dictionnaire de Médecine de Littré e Robin. Ora, o nomos grego e o norma latino têm sentidos vizinhos, lei e regra tendem a se confundir. Assim, como todo o rigor semântico, anomalia designa um fato, é um termo descritivo, ao passo que anormal implica referência a um valor, é um termo apreciativo, normativo, mas a troca de processos gramaticais corretos acarretou uma confusão dos sentidos respectivos de anomalia e anormal. Anormal tornou-se um conceito descritivo e anomalia tornou-se um conceito normalitivo". (CANGUILHEM, 2002[1966], p. 101)


Embora essa peculiaridade exista na língua francesa, o mesmo não ocorre no português. Na nossa língua, há o adjetivo anômalo e o substantivo anormalidade. Essa observação me veio à tona inicialmente nas aulas da disciplina Comunicação e Discurso, ministrada pela professora Cristina Teixeira de Melo, do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM/UFPE), no início do ano passado, lá no Recife, num momento em que eu acabara o mestrado e não queria parar de estudar. Então, como aluno ouvinte, lá fui eu me meter com Foucault, Canguilhem e suas reflexões "cabeçudas" (tomando emprestado um termo da professora Cristina).

Depois, já no Rio, ao indagar o professor Estellita sobre o mesmo assunto, resolvi buscar mais informações a respeito. Primeiro, fui ao site do Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, o Michaelis (http://michaelis.uol.com.br/). Lá, para a minha surpresa, descobri que a palavra anômalo deriva do grego (anómalos), tem como sinôminos - olhem aí a confusão! - "aberrante, desigual, excepcional, irregular, anormal" e, na história natural, diz respeito a "seres que se afastam do tipo ou norma a que pertencem". Já anormalidade significa, de acordo com o Dicionário Aurélio (1986, p. 126, grifo nosso), "qualidade ou estado do que é anormal, abnormalidade, abnormidade, anomalia". Complementando o nosso  pensamento, Houaiss (2009, p. 141, grifo nosso) afirma, entre outras coisas, que anormalidade é algo que "foge à norma, situação ou fato anormal, anomalia".

Pode parecer uma besteira essa discussão semântica, mas percebe-se que a associação feita entre anomalia x anormalidade e anômalo x anormal é evidente, indicando que os termos se confundem. Eu acredito que isso guarde relação direta com o próprio francês, que associou o adjetivo anormal ao substantivo anomalia.  Não podemos nos esquecer da influência secular e direta que o Brasil teve da cultura francesa. Levando-se em conta que as duas línguas são originárias do latim, não é de se estranhar as semelhanças.

Para mim, o interesse em "desvendar" essa questão é buscar compreender o estatuto do patológico na cultura atual. Não é fácil mesmo, ainda mais quando se tenta aprofundar Canguilhem. A cabeça dá, muitas vezes, um "tilte" e aí eu fico, se brincar, sem nem saber mais o que é adjetivo ou substantivo (poderiam me definir isso, por favor?). Brincadeiras à parte, vejo que anômalo e anormalidade tem a ver com norma, um conceito caro a Canguilhem e, posteriormente, a Foucault - mas isso é assunto para um outro post. Por hora, atenho-me a uma das ideias defendidas em O normal e o patológico de que anomalia não pode ser confundido com doença, embora isso possa parecer à primeira vista. "O anormal não é o patológico. Patológico implica em pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e impotência, sentimento de vida contrariada. Mas o patológico é realmente o anormal" (CANGUILHEM, 2002[1966], p. 106, grifos do autor).

Por fim, outra frase emblemática do próprio Canguilhem, retirada da mesma obra, de que:

"O patológico não é a ausência de norma biológica, é uma norma diferente, mas comparativamente repelida pela vida" (2002[1966], p. 113-4)    


Pausa para reflexão...


Referências bibliográficas

CANGUILHEM, G. O normal e o patológico, trad. Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas e Luiz Octavio Ferreira Barreto Leite. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002[1966].
FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário de Língua Portuguesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
HOUAISS, A.  Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
MICHAELIS. Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1998-2009. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/>. Acessado em: 29 abr. 2011.

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