quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Gonzagão e o lugar das efemérides para a memória


"Se é dengo a roer
Que tu quer recordar
Tamos aí com meu fole
Pra te ajudar"
Humberto Teixeira em Saudade Dóicanção
gravada por Luiz Gonzaga em 1976 no LP
Capim Novo (RCA-atual Sony Music)

Comemoração de um fato geralmente auspicioso, a efeméride é uma forma de prestarmos atenção ao tempo e rememorarmos acontecimentos do passado, muitas vezes envolvendo figuras públicas. O recurso é bastante utilizado no jornalismo, assim como os obituários e os perfis biográficos, transformando a imprensa numa instância didática e, por isso mesmo, útil, segundo afirma Alberto Dines. No seu artigo "Modo de usar", publicado no site do Observatório da Imprensa, ele informa que esse tipo de pauta foi introduzido no jornalismo brasileiro pelo jornalista e cronista esportivo Armando Nogueira no Jornal do Brasil, configurando-se num "álbum de recortes, agenda (do latim agere, agir), organização de ações, lembretes". Nesse sentido, a efeméride é um convite à memória.

Se o início de 2012 foi marcado pela lembrança na mídia sobre os 30 anos da morte da cantora Elis Regina (1945-1982), o final deste ano está sendo voltado ao centenário de nascimento do sanfoneiro, cantor e compositor Luiz Gonzaga (1912-1989). Famoso por popularizar ritmos tipicamente nordestinos, Gonzagão recebeu o título de "Rei do Baião", sendo considerado hoje um dos ícones da música brasileira de todos os tempos. Asa Branca, composta em parceria com Humberto Teixeira, é a sua canção mais emblemática. A música é considerada um hino do Nordeste por retratar a seca que castiga animais e homens que lá moram, obrigando-lhes a migrar com saudade no coração.

Assim como com Elis, Gonzagão vem recebendo várias homenagens pelo Brasil. Uma das mais importantes foi o filme Gonzaga - De Pai para Filho. Dirigido por Breno Silveira, o longa narra a relação de amor e conflito entre o sanfoneiro e o seu filho, o compositor Gonzaguinha (1945-1991). A trajetória do Rei do Baião é contada desde a fuga da cidade natal, Exu, no sertão de Pernambuco, até a turnê "Vida de Viajante", em 1981, que marcou as pazes com o seu filho. Lançado no dia 26 de outubro, De Pai para Filho já ultrapassou a marca de mais 1 milhão de espectadores em pouco menos de um mês.


Trailer do filme Gonzaga - De Pai para Filho (Brasil, 2012)


Para além de resgatar uma história importante da nossa música brasileira, a cobertura midiática a respeito de Gonzagão é revelador do lugar da memória. Embora esse recurso jornalístico seja antigo, como dissemos, ele adquiriu um valor diferenciado na atualidade, contribuindo por legitimar e enquadrar um certo tipo de memória, sobretudo no contexto de midiatização em que vivemos, marcado pelo predomínio das mediações e das interações baseadas nos meios de comunicação. Ocupando um lugar privilegiado na narrativa de fatos históricos, a mídia vulgariza a própria narrativa histórica, dotando a trajetória de vida de personalidades de uma singularidade. Através da mídia, essa trajetória existe e, a partir do presente, o passado é reinterpretado, analisa Sacramento (2009), ao tratar dos discursos midiáticos a respeito da morte do escritor Dias Gomes, ocorrida em 1999. 

Poderíamos dizer, assim, que os meios se converteriam em gestores da memória. A própria midiagrafia, que revaloriza o discurso biográfico, de acordo com Sodré (2004) e Sacramento (2009), é uma maneira de gerenciar essa memória, com vistas a evitar o esquecimento e também a conferir credibilidade à própria mídia, a partir do momento em que ela reconstrói um outro "real" através das suas práticas discursivas e a forma como ela enquadra o passado no presente. Dessa forma, diz Sacramento, pesquisar sobre a personalidade midiagrafada "é tanto analisar como a mídia escreve uma história quanto mostrar como a mídia se inscreve na história" (p. 136). Seria uma forma de refletir sobre algo mais profundo.

Uma das constatações é que a construção narrativa dá uma noção aparente de uma unidade identitária ao midiagrafado. "Há, portanto, uma idealização da vida do sujeito biografado como um 'desde sempre': um ser dotado de uma característica única e perene que marcou todas as suas ações ao longo da vida" (SACRAMENTO, 2009, p. 148, grifo do autor). A memória seria, então, um princípio organizador a conferir sentido à trajetória de vida do sujeito, através dos acontecimentos narrados, permitindo uma visão retrospectiva convenientemente disposta de uma trajetória e de uma biografia. Nesse sentido, a memória se associaria à noção de projeto (vista como um procedimento organizado para atingir determinado fim) para "dar significado à vida e às ações dos indivíduos, em outros termos, à própria identidade" (VELHO, 1988, p. 101, grifos do autor); uma identidade social que daria conta, de certo modo, das experiências fragmentadoras do indivíduo.

Não quero me alongar mais no comentário desta semana a fim de não complexificar demais o assunto. Já que tratamos de efemérides e memória em relação a Gonzagão, nada melhor que acionar a própria mídia para contar a história do nosso midiagrafado. Imagens, depoimentos, documentos, fotos e músicas se unem para reconstruir determinados fatos relativos considerados relevantes hoje em dia na trajetória do "Rei do Baião" sob uma ótica bem particular nas comemorações dos seus 100 anos de vida.


Centenário Luiz Gonzaga - Programa Fantástico (TV Globo, edição 27 set. 2012)


"Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim"
José Saramago em Passado, Presente, Futuro, poema
publicado em 1966 no livro Os Poemas Possíveis (Portugália Editora)


Referências bibliográficas
  • DINES, Alberto. Modos de usar. In: Observatório da Imprensa, edição 313, 2005. Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/modo-de-usar>. Acesso em: 14 dez. 2012.
  • SACRAMENTO, Igor. Memórias póstumas de Dias Gomes. In: Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 1, n. 20, p. 133-150, janeiro/junho 2009.
  • SODRÉ, Muniz. Prefácio. In: PENA, Felipe. Teoria da biografia sem fim. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2004.
  • VELHO, G. Memória, identidade e projeto: uma visão antropológica. In: Revista Tempo Brasileiro, n. 95, Rio de Janeiro, out-dez, 1988.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O início, o fim e o meio


Me vejo o tempo todo começar de novo
E ser e ter tudo pela frente
Abril, composição de Adriana Calcanhoto gravada por
Leila Pinheiro, em 1998, no CD "Na Ponta da Língua" (EMI Music)


Na sucessão regular de eventos ou fenômenos, a sequência construída aponta para o meio, o fim e o início de um ciclo, sob diferentes perspectivas. Os olhos se habituam à cidade. Ela torna-se mais familiar e integra-se ao rastro de recordações, numa visão estrangeira e radicada. O rio que passa no intermédio é também o Rio ribeira onde é possível atracar o barco, fincando raízes. É também o limite do espaço e o remate de uma fase. Fecho de composição e, ao mesmo tempo, preâmbulo. Singela (re)transform(ação).

Neste meio, neste fim e neste início, como em qualquer outra etapa da vida, há um caminho, e não uma pedra, ao contrário do que disse Drummond. Um caminho de direções a marcar e a seguir, um caminho de encontros e de despedidas. Vida de estação. Plataforma de muitas idas e vindas. E, assim, na série de acontecimentos que se segue, a ordem se estabelece e o processo continua, ininterruptas paisagens em todas as estações. Dentro e fora dos trens e em todos os sentidos. Tô chegando, tô partindo, tô ficando.





São só dois lados
da mesma viagem
O trem que chega
é o mesmo trem da partida
A hora do encontro
é também despedida
A plataforma desta estação
é a vida deste meu lugar
Encontros e Despedidas, canção de Milton Nascimento e Fernando Brandt
e gravada primeiro por Simone, em 1981, no álbum "Amar" (CBS-atual Sony Columbia), depois pelo próprio Milton, em 1985. no LP "Encontros e Despedidas (Barclay Polygram-atual Universal Music) e por Maria Rita, em 2003, em CD "Maria Rita" (Warner Music)



domingo, 28 de outubro de 2012

Matutanas


Quando eu estou sozinha no meu canto
Penso muito nas pessoas
Penso muito nos seus cantos
Penso o quanto foi difícil
Para cada um falar
E sinto o coração se confortar
E fico por um tempo - meio assim


Estar no entremeio e concretizar algo em fase de elaboração. Talvez esse seja o sentimento que melhor caiba no comentário desta semana. Tudo na cabeça ainda fluindo sem muita nitidez, apenas sensações no meio da estrada. Pequenos redemoinhos a espirar aqui e acolá no espaço de dentro. Por isso mesmo vem bem a calhar uma brincadeira neologística substantiva com a expressão matutar no título do post.

Bastante utilizado no Nordeste brasileiro, esse lindo verbo intransitivo (que não precisa de outro complemento para significar) deriva da palavra matuto, que quer dizer, em geral, alguém do mato, acanhado, desconfiado e até mesmo ignorante. Matutar, então, representa o ato de refletir, meditar, cogitar. "Parte do tempo esteve à janela, matutando", já escreveu Machado de Assis em Quincas Borba, ao tratar do personagem Rubião, ingênuo rapaz que se torna discípulo do filósofo que dá nome ao referido livro.


E penso em sentimentos meus
Penso em sentimentos
Quantos edifícios, quantas casas
Quanta gente dentro - como será...
Que sonhos terão
Será tudo em vão
Eu juro que não


Matutando sobre leituras que vêm mexendo comigo, desta vez, o pensador alemão Andreas Huyssen com o seu Passados presentes e sua análise a respeito da emergência da memória como uma das preocupações centrais da sociedade ocidental de hoje. Observado desde os anos 80 inicialmente na Europa e nos Estados Unidos, esse fenômeno sociocultural tirou de cena o futuro para colocar no lugar o passado como foco das atenções. Os projetos políticos e as ideologias de outrora caíram por terra, provocando uma nova lógica sensível do sujeito diante do mundo, juntamente com os avanços tecnológicos.

A obsessão contemporânea com o pretérito, que se visualiza numa difusão cada vez maior de práticas memorialísticas na cultura de modo geral, é consequência desse processo. Cultivar o passado significaria, em certa medida, uma forma de (re)afirmação do indivíduo frente a esse mundo. É claro que essa inferência é bem generalista e carece de maior aprofundamento. Por hora, comungo com a ideia do Huyssen (2001, p. 20), quando ele diz que o medo do esquecimento que acompanha a cultura da memória que vivenciamos atualmente é uma maneira de garantir a sobrevivência "em um mundo caracterizado por uma crescente instabilidade do tempo e pelo fracasso do espaço vivido".


E os morros vão ficando azuis
Sobre essa cidade
Sobre essa cidade
Eu já estou ficando pronta
Para viver a minha idadde
Para entender a liberdade
Para contar para os nossos filhos
Uma história de amor
E, até quem sabe, para fazer o amor
E é bem capaz da gente ser assim    


Diante da velocidade do tempo que se instaura e das próprias inovações técnicas que tornam o presente mais fugaz e até mais passado rapidamente, paro um pouco para matutar as imagens e os sons que passam pela janela. Não como Carolina, e sim como meteorológico observador. E aí nesse refletir, meio ignorante, meio tímido, meio cismático, meio profundo, vejo-me com uma música que tive a felicidade de escutar e conhecer ao vivo dias atrás no show Leila Pinheiro Canta Mulheres e admirar de prima. Foi essa canção que inspirou e alinhavou a costura "pré-matura" desta semana que vos escrevo.


E a tarde vai caindo em mim
Sobre essa cidade
E eu fico pensando assim
A Tarde vai caindo em mim
E eu fico pensando assim
 [ A Tarde, composição do casal Francis Hime e Olivia Hime ]




Cada nova ideia de autor, cada nova canção traz consigo uma nova imagem-reflexão que carece. Ínspira pura matéria flutuando no leito do pensamento, como notas que são tocadas uma a uma na base do instrumento, preparando a alma da memória para adentrar no rio. 


O que mais me comove, em música,
são essas notas soltas - pobres notas únicas -
que do teclado arrancam o afinador de pianos...
Mario Quintana em Meu Trecho Predileto,
extraído do livro Sapato Florido (Editora Globo, 2005)  



Referências bibliográficas
  • ASSIS, Machado de. Quincas Borba. 4. ed. São Paulo: Clube do Livro, 1980.
  • HUYSSEN, Amdreas. Passados presentes. In: Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.
  • QUINTANA. Mario. Sapato florido. 2. ed. São Paulo: Globo, 2005.

domingo, 14 de outubro de 2012

O acaso da memória


"Não sei se o acaso quis brincar
Ou foi a vida que escolheu
Por ironia fez cruzar
O seu caminho com o meu"
Abel Silva e Ivan Lins em Acaso

"O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído"
Sérgio Britto em Epitáfio


Inicialmente, pensei em intitular o post desta semana de O passado no presente e no futuro, em decorrência de certas lembranças que voltaram à tona nos últimos dias. Mas aí depois decidi mudar o título para O acaso da memória. Na semana que passou, fui assistir ao novo espetáculo da Gal Costa, "Recanto", aqui no Rio de Janeiro. Em determinado momento da apresentação, Gal cantou O Amor. Música de Caetano Veloso e Ney Costa Santos, O Amor foi composta sobre um poema do russo Wladimir Maiakovski (1893-1930), considerado um dos principais nomes da vanguarda futurista e um dos maiores poetas do século XX.

Essa canção faz parte do LP "Fantasia", lançado por Gal em 1981 (gravadora Polygram-atual Universal Music). Não é das faixas mais conhecidas do grande público, mas um dos pontos altos do disco, a meu ver. Pois bem, assim que Gal cantou a música, eu me reportei imediatamente à minha infância. Era como se, por um momento, eu tivesse saído da plateia do teatro e voltado no tempo, lá pelos meus 6 ou 7 anos, para a sala da casa de meus pais. O Amor povoa a minha memória musical, assim como tantas outras canções que tocaram na radiola da sala lá de casa. Gal, evidentemente, fazia parte da nossa discoteca.



Gal Costa cantando "O Amor" (Caetano Veloso/Ney Costa Santos/Vladimir Maiakovski) - Show Recanto - 



Contracapa do disco "Fantasia", de 1981
Eu me vi, então, sentado no antigo sofá, lendo com curiosidade o encarte do LP, enquanto escutava a bela canção. Tempo em que ainda era possível "degustar" o trabalho de um artista e eu ouvia com prazer e atenção tudo o que rolava em matéria de MPB. Por isso, optei pelo termo "acaso" no título deste post, com o intuito de fazer um trocadilho com a memória. De acordo com o site do Dicionário Michaelis, esse substantivo masculino tem como um dos significados possíveis acontecimento incerto ou imprevisível, casualidade. Também pode ser destino, fortuna, sorte.


Capa do CD "Recanto", lançado em 2011
Para quem lê sobre memória, sabe que o presente é fundamental na evocação do passado. Sendo assim, o acontecimento tem importância vital para a produção de sentidos. Ciente de que guardamos apenas algumas lembranças de cada época de nossa vida, a música tem uma presença muito forte na minha vida e, claro, no meu baú de recordações. Ela seria, então, o ponto de contato com o aspecto social da minha memória. As memórias não são individuais apenas. Elas se ligam à memória coletiva, como diz o sociólogo francês Maurice Halbwachs (1977-1945).

Para que a memória exista e se conserve, é preciso que esteja vinculada a algum grupo. Segundo Halbwachs (2004, p. 169, Tradução Nossa), "a memória dos homens depende dos grupos que a rodeiam e das ideias e imagens nas que os grupos têm o maior interesse". Desse modo, as nossas memórias não estão solitárias no mundo. Elas estão ligadas, de alguma forma, a outras pessoas também.

Memória e sociedade em Halbwachs
"A memória individual não é mais que uma parte e um aspecto da memória do grupo, como de toda impressão e de todo fato, inclusive naquilo que é aparentemente mais íntimo se conserva uma lembrança duradoura na medida em que se refletiu sobre ela; é dizer, se a vinculou com os pensamentos provenientes do meio social" (HALBWACHS, 2004, p. 174, TN). Só o fato de estar escrevendo aqui sobre Gal, o LP que ela gravou em 81, o show que ela está fazendo atualmente e a canção O Amor é uma forma de deixar viva a minha memória, a partir do momento em que eu compartilho meus escritos na internet.

Como um acontecimento imprevisível, essa lembrança da música foi quase que um acaso para mim. Seria uma ideia interessante de comparar minha recordação com alguma coisa que metaforicamente "caiu" na minha frente, já que o termo "acaso" vem do latim a casu, que, por sua vez, deriva de cadere (cair). Sendo assim, termino este post com um trecho do texto original do Maiakovski que inspirou Caetano Veloso e Ney Costa Santos e que bem poderia caracterizar poeticamente a função da memória nestas minhas reflexões:


Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta
repelindo o absurdo cotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Vladimir Maiakovski em O Amor


Referências bibliográficas
  • HALBWACHS, Maurice. Los marcos sociales de la memoria. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 2004.

sábado, 6 de outubro de 2012

Em meio à trilha, a metáfora surpresa


"...Eu senti isso como uma trilha
literalmente uma trilha sonora e
uma trilha no meio da mata...
Fui andando naquele pico de
floresta com
esta trilha ao fundo..."
Leila Pinheiro 


Já faz algum tempo que não escrevo aqui no blog. De certa forma, isso trazia-me certo desconforto pelo desejo de dar continuidade aos textos e não ter inspiração suficiente. Pensar dói, escrever idem, pela humana exigência da consciência e da linguagem. Felizmente, nem tudo estava/está perdido. Eis que me deparo hoje com um lindo vídeo postado recentemente no Youtube da cantora Leila Pinheiro e do compositor Célio Cruz cantando juntos uma composição dele no Projeto Amazônia Convida, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro até novembro deste ano.

Aparentemente isso não teria qualquer correlação com a proposta deste blog. Mas foi a declaração da Leila contida no programa do show - a que abre este post - que me deu o estalo para a pertinência com o que venho fazendo. Ambos, projeto de show (da Leila) e projeto de doutorado (meu) têm a ver com trilha, com caminho que se busca fluir. A trilha é plena de possibilidades, afinal existem várias direções possíveis. Na trilha, há as paisagens ao redor, potencialmente diversas, a depender do rumo tomado. Cores, cheiros, visões, sensações, encontros, descobertas, tudo isso vai nos fazendo seguir.


Imagem do programa do show Amazônia Convida, em cartaz no CCBB do Rio de Janeiro


Mas a trilha não é apenas isso. É som também. E na trilha vai se formando discretamente uma outra trilha repleta de canções, como um tapete mágico-sonoro dotando o caminho de intenções bem particulares, amalgamando as faces da vida numa vida toda. Não tinha realmente me dado conta dessa trilha ao fundo. Embora a característica musical sempre estivesse presente lá, ao tratar da trilha, só me vinha à mente a mata imaginária com seus imensos troncos e sua primária cor verde e um trilho a compor o caminho a seguir, deixando para frente e para trás o rastro do que foi e do que virá.  

Então, metaforicamente contente e satisfeito de mim, retomo a trilha com uma trilha bem peculiar. Aproveitando o ensejo do Amazônia Convida, destaco o final da apresentação de 25 de setembro de 2012 que reuniu Leila e Célio cantando juntos a tal composição dele que havia mencionado no começo deste post e à qual tive a felicidade de assistir de perto na plateia. Não sei o título da canção. Busquei na internet, mas não consegui descobrir o nome. Sinto por isso. De todo modo, o fundamental é a intenção do gesto e do som. Que eles possam acertar com os intentos puros e simples, justamente os mais profundos...



"Tive a ideia de te entregar um poema cantando rio
Na imagem do teu olhar o sol se vai por um fio"
Célio Cruz

* Dedico a retomada desta trilha à querida Leila Pinheiro, que tanto toca a minha trilha.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

No Amigo, a Casa

Recebi de uma amiga uma mensagem desejando um Feliz Dia do Amigo e fiquei contente pela lembrança. Não só gentileza é saúde, como também (e principalmente!) amizade. Faz bem ao coração e à alma. Por isso, resolvi compartilhar com os amigos queridos a alegria deste dia. Embora hoje seja a data comemorativa oficial, a celebração deve ser permanente, o ano inteiro. Amigo é pedra preciosa pelo bem querer desprendido e humano. Amigo simplesmente é e ponto final. Como diria liricamente o poeta Vinicius de Moraes:


"[...] um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica"
Vinicius de Moraes em Soneto do Amigo 


Não pretendo discorrer muito hoje. Apenas parar um pouco, lembrar dos amigos e, na medida do possível, enviar uma palavra de carinho, mesmo que em pensamento. Como neste post, em que destaco com total pertinência a canção "Amigo é casa", do pernambucano Capiba (1904-1997) e do carioca Hermínio Bello de Carvalho, resgatada em 2008 por Simone e Zélia Duncan no DVD de mesmo nome. Gosto muito desse título porque acho que traduz o que representa, de fato, um amigo de verdade na nossa vida. Segue abaixo o link desse choro na voz das duas cantoras citadas e um trecho da letra da música:



"Amigo é feito casa que se faz aos poucos
e com paciência para durar para sempre
Mas é preciso ter muito tijolo e terra
preparar reboco, construir tramelas
Usar a sapiência de um João-de-barro
que constrói com arte a sua residência
Há que o alicerce seja muito resistente
que às chuvas e aos ventos
possa então a proteger"
Capiba e Hermínio Bello de Carvalho em Amigo é casa

sexta-feira, 22 de junho de 2012

No meio das urdiduras

Urdidura é um termo próprio à costura. Ele se refere aos fios estendidos longitudinalmente em um tear e através dos quais é lançada a trama. Também diz respeito à tramoia, maquinação, enredo e entrelaçamento. Neste post, a urdidura tem todos esses sentidos e outros mais, levando-se em conta os resultados do seminário Comunicação, Informação e Cidadania: Tecendo Saberes na Saúde. Organizado pela minha turma de doutorandos do PPGICS e realizado nos últimos dias 14 e 15 de junho no ICICT-Fiocruz, no Rio de Janeiro, o evento superou as expectativas, a começar pela proposta idealizada.

Inicialmente, pretendia-se apenas reunir conceitos caros aos projetos de pesquisa em desenvolvimento por mim e meus companheiros do curso em mesas temáticas. Só que o trabalho em conjunto e o compromisso de querer fazer o melhor acabou reverberando positivamente no evento. A urdidura das palestras e, sobretudo, das discussões levantadas a partir das falas dos convidados gerou um tecido de saberes com cores e formas interessantes de se ver e ouvir. Em parte, essa trama foi decorrente dos palestrantes.


Papel da biomedicina na construção social de saúde e doença foi discutido no evento


Sem uma articulação prévia entre eles, todos os pesquisadores convidados souberam dialogar com os  temas propostos e ainda lançar indiretamente reflexões para temáticas dos outros participantes de forma bastante positiva. As mesas tinham como eixo geral de discussão o papel da biomedicina na construção social sobre saúde e doença, as contribuições da comunicação e da informação em saúde para consolidação da cidadania e a qualidade da informação e a informação para qualidade em saúde.

Seis palestras foram realizadas nos dois dias. Nelas, foram abordados:

  • a construção social das doenças: o caso da doença de Chagas e seu enquadramento pela medicina tropical (Simone Petraglia Kropf - COC-Fiocruz);
  • o movimento médico-sanitarista e a difusão da ideologia da maternidade científica no início do século XX (Maria Martha de Luna Freire - UFF);
  • o governo eletrônico e sua contribuição para a saúde como direito à cidadania (Ricardo Ismael de Carvalho - PUC-Rio);
  • as contribuições da comunicação e informação em saúde para cidadania (Suzy dos Santos - ECO-UFRJ);
  • decisões de saúde baseadas em evidências: qual o papel da informação científica nesse processo (Maria Cristiane Barbosa Galvão - USP)
  • a informação com perspectiva em qualidade em saúde (Ilara Hämmerli Sozzi de Moraes - ENSP-Fiocruz). 

Há que se ressaltar o papel dos debatedores no evento. Cada professor que participou das mesas soube tirar proveito das falas, fomentando as discussões que desejávamos. Para o público que esteve presente e para nós, doutorandos, evidentemente, isso foi muito bom porque gerou questionamentos, provocações e análises. No meu caso, pude repensar o projeto de pesquisa em vários aspectos, a começar pelo conceito de doença. 


Cidadania e qualidade da informação foram foco de discussão em outras duas mesas


Sabendo que a doença significa uma forma de representação da sociedade, e não apenas um fenômeno biológico que se manifesta no organismo de um indivíduo, o conceito de framing, abordado no seminário sob a ótica da História da Medicina, pode ser interessante de ser aprofundado. Em linhas gerais, framing é considerado o produto de um ato de enquadramento pelos sujeitos em determinadas circunstâncias históricas e sociais. Assim, o significado de uma enfermidade não seria apenas decorrente do campo biomédico, mas também consequência de um processo de lutas e negociações ocorridas no seio social.

Além disso, outros pontos levantados no seminário foram extremamente importantes. Entre eles, o papel dos meios de comunicação como retroalimentadores de normas biomédicas, a importância dos estudos científicos na produção de "verdades" e a consciência de que nem as informações com qualidade muito menos as evidências de pesquisa são neutras. Aliás, como nada na vida é totalmente neutro, por mais que possa parecer.

No fim das contas, acredito que conseguimos transformar os fios num pano bacana e contribuir, de alguma maneira, para o campo da comunicação e da informação em saúde. Evidentemente, não foi uma contribuição de grande vulto. Mas, a nosso modo, pudemos incentivar a indagação entre as pessoas, seja para a prática de pesquisa, seja para prática da própria vida mesmo. Pois, aproveitando a fala da professora Ilara, que fechou o ciclo das palestras com uma citação do escritor português José Saramago (1922-2010):


"A prioridade absoluta tem de ser o SER HUMANO. Acima dessa, não reconheço nenhum outra prioridade."

sexta-feira, 15 de junho de 2012

A saudade na minha mala

É curioso rememorar o passado através das lembranças vividas. Nos últimos dias, papeando com um novo amigo num boteco aqui do Rio, acabamos trazendo à tona lembranças musicais antigas que marcaram nossas infâncias e adolescências. A canção, especialmente a brasileira, sempre esteve presente desde a mais tenra idade. Tanto que não consigo lembrar, ao certo, do primeiro contato com a música. Nas minhas memórias mais longínquas, ela estava lá, em grande parte porque minha família apreciava escutar discos, como aprecia até hoje. Então, isso acabou sendo assimilado naturalmente por mim.

Na infame fase das lambadas, entre fim dos anos 80 e início dos 90, eu simplesmente odiava tudo o que tinha a ver com esse gênero musical. Então, artista que se meteu a cantar modismos acabava virando farinha de um saco só que eu não queria abrir mais. Foi o que ocorreu com a Elba Ramalho. Sempre admirei a sua identidade nordestina. Tinha a impressão de ser uma jóia bruta no jeito de cantar e se expressar e, por isso mesmo, tão especial e bonita. Quando criança, gostava de vê-la e escutá-la cantando frevos, especialmente. Entretanto, na época dos hits "Doida" e "Ouro puro" (auge dos sintetizadores e instrumentos eletrônicos na MPB), acabei identificando-os com as lambadas e isso me fez perder um pouco o interesse e encanto por ela. Hoje, evidentemente, isso mudou.

Falo sobre o assunto retomando um pouco do post Memórias e saudades do Recife em carnis valles. Com o passar do tempo, as memórias tendem a se aplainar, em grande parte pela maior distância com o fato vivenciado e o próprio processo de envelhecimento. Então, o que era uma coisa tão grandiosa antes pode não ser o mesmo hoje em dia. Também mudamos com o tempo, então as vivências evocadas tomam um outro sentido. Bem, tudo isso aqui é apenas uma maneira de dizer que, já na fase adulta, continuo admirando muito ver a Elba cantar e não achando mais tão odioso assim os antigos hits. Também pudera. Comparados aos sucessos de hoje, eles são verdadeiros clássicos do cancioneiro popular...

E eu, assim como o Drummond, amo o perdido. Entretanto, e felizmente, meu coração não se confundiu, como o dele. Talvez porque as coisas tangíveis ainda sejam sensíveis à palma da minha mão. E "as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão".  


[ Elba no programa Globo de Ouro, da Rede Globo, em 1988, cantando o pout-pourri com as músicas: Energia (Lula Queiroga), Quero mais (Naldo Cordel), Banho de cheiro (Carlos Fernando), De volta pro aconchego (Dominguinhos/Naldo Cordel) e Doida (Naldo Cordel) ]

PS: Agradeço a Leandro Arraes pela indicação do vídeo. Valeu, Leandro!

sexta-feira, 8 de junho de 2012

A episteme segundo Millôr

Por muito tempo, não sabia o que significava epistemologia. Era apenas uma palavra bonita que ficava a fitar a uma distância regulamentar no meu baú de significados. Primeiro no mestrado, e agora já no doutorado, estou sendo "gentilmente" obrigado a compreender o que quer dizer, tendo em vista o fato de o termo ser utilizado por diversos autores e alguns professores e companheiros de curso.

De acordo com o Michaelis, a epistemologia trata da teoria do conhecimento, tendo a ver com sua origem, natureza e limites. Nesse caso, o conhecimento representa um ponto de confluência entre crenças e verdades. Enquanto a crença está no domínio da opinião e do subjetivo, o conhecimento significa uma crença de outra ordem, verdadeira e justificada, a explicar o mundo que nos rodeia.

Na saúde, a epistemologia hegemônica está relacionada ao saber biomédico, fundado na razão para determinação do mundo. Aos cientistas, cabe observar e analisar a realidade dada para construção do conhecimento que a represente de forma fiel. As doenças, por exemplo, são entidades de existência concreta que se expressam através de sintais e sintomas do organismo, considerados os dados objetivos para a ciência. O advento da medicina clínica, tão bem estudada pelo francês Michel Foucault (1926-1984), explica em parte a epistemologia biomédica de hoje e o conhecimento predominante na saúde.

A cada dia, penso mais nesse tão decantado conhecimento e, à medida que me aproximo do meu objeto de pesquisa, sinto-me afastar dele pelo simples fato de ser um fundo sem fundo o poço que teimo adentrar. Qual o verdadeiro significado do conhecimento em relação ao que busco estudar? E quais os critérios que definem uma verdade socialmente, ainda mais quando ela é encarada como absoluta? Não sei hoje, nem sei se saberei um dia.

Por hora, divirto-me com os ditos do humorista, desenhista, escritor e jornalista Millôr Fernandes (1923-2012). Dias atrás, dando continuidade ao levantamento da minha amostra de pesquisa, encontrei um poema interessante e engraçado dele sobre o conhecimento e a epistemologia. O texto foi publicado na revista Veja de 14 de maio de 1975.


Texto e imagem de  Millôr Fernandes sobre o conhecimento publicados na Veja de 14 de maio de 1975

Como diria Millôr, é difícil mesmo encontrar epistemologia, pois ela está no sujeito e depende única e exclusivamente dele para se desenvolver. Não é algo palpável. Tem a ver com o saber. E, estando na pós-graduação, a ambição ilusória está nos estudos. Por isso mesmo, minha epistemologia particular é a consciência da necessidade de estudar mais. E nada melhor do que os livros para me fazerem entender a perspectiva epistemológica mais ampla posta no meio acadêmico de buscar enriquecer mais e mais a gama de conhecimentos.

Sendo objetos transcendentes de amores tácteis, retomando Caetano Veloso, esses conhecimentos me fazem viajar no/pelo Universo. "Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso. E, sem dúvida, sobretudo o verso, é o que pode lançar mundos no mundo", explica o compositor. Estar, ser e existir: eis a tríade desafiadora do epistemólogo. Será essa a verdadeira metafísica do conhecimento? Longe de mais questões, deixemos os livros adentrarem apontando para a expansão do(s) Universo(s). Quem sabe eu epistemologize na mais pura simplicidade do que posso conhecer para melhor significá-lo.



[ Livros, canção do compositor Caetano Veloso que consta no disco "Livro" (gravadora Universal Music), lançado em 1997 ]

PS: Inicialmente, o texto que constava nesta postagem era um pouco diferente, menor em tamanho e desenvolvimento analítico. Mas, devido à colocação posta pela amiga Tânia Consuelo, resolvi ampliá-lo, buscando explicar um pouco mais o que significa epistemologia. Não sei se consegui ser claro, de fato, mas o exercício me forçou uma reflexão maior sobre o assunto e, curiosamente, me fez compreender melhor o significado do conceito. 

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Nas tramas do tecido

Comunicação, informação e cidadania: tecendo saberes na saúde é o nome do seminário que minha turma de doutorandos está organizando para os próximos dias 14 e 15 de junho na Fiocruz. A iniciativa surgiu a partir de uma demanda da disciplina "Seminários Avançados de Pesquisa I". A sugestão inicialmente era outra: cada aluno organizar separadamente uma palestra que tivesse a ver com seu projeto de pesquisa. Mas, aproveitando o próprio nome do evento que criamos depois, sugerimos unir interesses teóricos comuns entre os colegas para construir uma proposta mais ampla

Decidimos então criar três mesas temáticas que buscam refletir sobre a construção social da relação saúde-doença, a qualidade da informação para tomada de decisões em saúde e as tecnologias de comunicação e informação na consolidação da cidadania. A proposta é que o evento seja um espaço de aproximações dos discentes, com base em estudos atuais de pesquisadores do campo. Por isso, especialistas de dentro e fora da Fiocruz foram convidados para discutir sobre questões teóricas específicas a esses eixos. O debate será enriquecido com a participação de professores do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT-Fiocruz).

No fundo, a intenção do seminário é buscar vivenciar um pouco a interdisciplinaridade. Tão decantado na teoria, esse conceito revela-se difícil e complexo de se vivenciar na prática pela necessidade que se coloca de construir um saber solidário na troca de informações, conhecimentos e experiências entre sujeitos de determinado campo científico. "Só há interdisciplinaridade se somos capaz de partilhar o nosso pequeno domínio do saber, se temos coragem necessária de abandonar o conforto da nossa linguagem técnica e para nos aventurarmos num domínio que é de todos de que ninguém é proprietário exclusivo", defende a filósofa portuguesa Olga Pombo no artigo Interdisciplinaridade e integração dos saberes (http://revista.ibict.br/liinc/index.php/liinc/article/viewFile/186/103).

Embora seja uma noção comum ao campo acadêmico, a interdisciplinaridade poderia ser pensada em outras esferas também, fora da área dita "douta". Afinal, nossos saberes são construídos cotidianamente nas trocas com outras pessoas, do vendedor do armazém da esquina ao pós-doutor com décadas de estudo.

Bem, não vou desenvolver essa discussão agora, pois a intenção é apenas divulgar o seminário. Para que se interessa pela comunicação e informação em saúde e estiver pelo Rio de Janeiro, fica a dica. Para saber mais sobre o evento, basta acessar o site do ICICT.


sexta-feira, 4 de maio de 2012

Millôr e suas ironias com o passado

A memória é realmente um assunto vasto e super interessante, ainda mais quando tem a ver com a questão do discurso. Segundo o linguista francês Michel Pêcheux (1938-1983), a memória discursiva se insere em práticas sociais e se caracteriza pelo fato de um já-dito sustentar as relações de sentido entre os discursos. Um espaço móvel de deslocamentos, retomadas e conflitos de regularização da materialidade discursiva. Dessa maneira, a memória seria sempre perturbada a cada acontecimento discursivo novo, desmanchando a regularização existente e fazendo surgir um novo sistema entre elementos novos e antigos.

Em termos de ironia, a memória costuma estar sempre presente para subverter a paráfrase feita. A ideia é justamente retomar palavras já ditas há pouco ou há muito tempo para redizer o contrário ou completamente diferente do sentido primeiro. Comecei a pensar nisso recentemente, depois de tomar contato com os trabalhos produzidos pelo humorista e jornalista carioca Millôr Fernandes (1923-2012) para a revista Veja na primeira metade dos anos 70. Um deles é este abaixo, datado de 14 novembro de 1973:


Produção do humorista Millôr Fernandes publicada na edição de 14 de novembro de 1973 de Veja 

No exemplo acima, é possível observar não só o humor peculiar do Millôr de criticar as coisas como também o sentido implícito no passado. Semanticamente, o termo "pré-histórico" nos remete a um período anterior aos documentos escritos; um tempo findo bastante longínquo de se imaginar, sobretudo quando os seres representados eram animais hoje extintos. Porém, o que poderia parecer estritamente negativo - afinal o passado sempre é visto como algo velho e ultrapassado - acaba tomando um sentido cômico. Mesmo assim, para que a noção ressignificada faça sentido em nós, é preciso que tenhamos em mente o significado original. Caso contrário, o sarcasmo não fará sentido algum ou, ao menos, não produzirá o efeito desejado. De minha parte, tenho passado os últimos meses de pesquisa descobrindo transversalmente a genialidade do Millôr e constatado cada vez mais o quanto o seu humor faz falta. Salve, querido Millôr! E abaixo aos reais monstros pré-históricos!!

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Vestígios de memória

Há pequenas impressões finas como um cabelo e que,
uma vez desfeitas na nossa mente, não sabemos aonde
elas nos podem levar. Hibernam, por assim dizer, nalgum 
circuito da memória e um dia saltam para fora, como se
acabassem de ser recebidos. Só que, por efeito desse
período de gestação profunda, alimentada ao calor
do sangue e das aquisições da experiência temperada
de cálcio e de ferro e de nitratos, elas aparecem já
no estado adulto e prontas a procriar. Porque as
memórias procriam como se fossem pessoas vivas.

Trecho do romance Antes do degelo (2004 - Guimarães Editores),
de Agustina Bessa-Luís, pseudônimo literário da escritora
portuguesa Maria Agustina Ferreira Teixeira Bessa


A memória é realmente um assunto que rende análises diversas e profundas. Consciência inserida no tempo, como diria o querido poeta português Fernando Pessoa, ela representa a faculdade humana de conservar ou retomar ideias ou imagens. Na mitologia grega, a memória (Mnemosýne) era uma das deusas da primeira geração, com a capacidade de preservar tudo o que ocorria ao longo do tempo, além de mãe das nove Musas, que tinham o poder tanto de revelar quanto de fazer esquecer. Eis, então, a síntese da memória: lembrança e esquecimento a atuarem como forças complementares.

Na nossa vida, seja ela individual ou social, a memória sempre está presente, dando significado, de certo modo, à existência. É a partir das relações feitas com o passado que o presente vai sendo melhor compreendido. Não quero dizer com isso que vivemos em função unicamente do pretérito, mas ele tem sua importância vital, especialmente quando tratamos do discurso jornalístico, que se retroalimenta de analogias com os fatos já ocorridos anteriormente para dar sustentação aos seus enunciados, mesmo que seja só para negá-los.

Agora em 2012, a cobertura dispensada pela imprensa aos 30 anos da morte da cantora Elis Regina (1945-1982) foi, ou melhor, está sendo, algo realmente impressionante. Até 19 de janeiro, dia em que se celebra o falecimento da artista, contabilizei 51 matérias publicadas em jornais e outras quatro matérias em revistas, das quais uma de um semanário de Portugal. Totalizando com o restante dos textos que saíram depois dessa data, foram 98 matérias em periódicos e 12 em revistas. Isso sem contar com as matérias veiculadas em televisões e sites, além dos programas de rádio, que perfazem uma quantidade bem maior de inserções sobre Elis na mídia.


Esquecimento e lembrança se unem para significar no tempo a memória sobre Elis


Essa constatação torna-se ainda mais interessante se voltarmos ao passado. Nos 10 anos da morte de Elis, os meios de comunicação pareciam não ter o mesmo interesse em falar da cantora como hoje em dia. Naquela época, a memória parecia estar mais próxima do esquecimento. As manchetes da matéria de capa do Caderno 2 do Estado de São de Paulo no dia 19 de janeiro de 1992 ("Os dez anos em que o Brasil esqueceu Elis") e do texto publicado na editoria Ilustrada, da Folha de São Paulo, na mesma data ("Morte de Elis é mal lembrada dez anos depois") exemplifica um pouco do discurso em voga na época. Naquele mesmo ano, a própria biógrafa de Elis, a jornalista Regina Echeverria, declarava à imprensa que Elis estava esquecida, ao constatar uma diminuição nos eventos em nome da cantora, principalmente cinco anos após a sua morte.

Vinte anos depois, a situação se inverte e o esquecimento dá lugar a uma lembrança mais viva do que nunca. Manchetes publicadas este ano não faltam para indicar essa mudança:

  • "Elis na parede da memória" (Pampulha - MG - 7 a 13 jan. 2012);
  • "Memória é reforçada com shows, discos e exposição" (Folha de São Paulo - SP - 9 jan. 2012);
  • "Elis eterna" (Gazeta de Alagoas - AL - 19 jan. 2012);
  • "A voz que não morre" (O Popular - GO - 19 jan. 2012);
  • "Elis revive" (Jornal de Santa Catarina - SC - 19 jan. 2012);
  • "A voz inesquecível" (Diario de Pernambuco - PE - 29 fev. 2012).

Esse avivamento da memória tem a ver não só com o mito criado em torno de Elis ainda em vida e enfatizado após a morte precoce, mas também com as homenagens promovidas em seu nome. A mais recente, e também a mais 'robusta', partiu da família dela, com o anúncio de shows de Maria Rita (filha caçula de Elis), realização de exposição itinerante por algumas capitais brasileiras, documentário e lançamento de livro novo contando a trajetória da cantora. O anúncio do megaprojeto, ainda em 2011, fez com que a mídia ficasse atenta para isso, intensificando o noticiário.

Artisticamente, acredito que Elis esteja inserida no rol dos artistas que gozam de particular prestígio, capaz de "manter vivo o interesse que despertam" e "levar à busca do aprofundamento e da renovação do conhecimento", como diria o professor assistente doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) Wilton Carlos da Silva (2009). Pensando nele, as narrativas jornalísticas contribuiriam para o chamado "biografismo" de Elis, bem como uma forma de visualizar nitidamente o papel da memória na contemporaneidade.

Traçando um paralelo entre os campos da cultura e da saúde, poderíamos pensar também num biografismo sobre as doenças? Guardando as devidas singularidades e contextos diversos, acredito que sim. Falo com pouca propriedade, afinal seria necessário um aprofundamento sobre o que vem a ser biografismo nos estudos de memória. Porém, se observarmos o noticiário acerca da pandemia recente da gripe A(H1N1) em 2009, que trouxe à tona a memória da gripe espanhola do início do século XX, vemos que algumas doenças epidêmicas - encaradas quase que como "entes" - dialogam com os grupos sociais aos quais estão inseridos e são privilegiadas conforme o contexto, alterando a própria memória social. O que foi ontem pode não ser o mesmo hoje. Da mesma maneira, o que é hoje pode não ser o mesmo amanhã. Resta saber se o que foi ontem não será o mesmo amanhã. Bem, só o tempo é que vai nos dizer. Por hora, apenas a música é quem diz.



[ Trecho do show "Transversal do Tempo", apresentado por Elis Regina e César & Cia no Teatro Villaret, em Lisboa (Portugal), no ano de 1978. A música que aparece no vídeo é Nada será como antes, composta pela dupla Milton Nascimento e Ronaldo Bastos e gravada pela cantora em 1972 no LP "Elis" (Philips-atual Universal Music) ] 



Referências bibliográficas

  • BRITO, P. Elis na parede da memória. In: Pampulha, Belo Horizonte, 7 a 13 jan. 2012. Reportagem, p. 3.
  • CONTENTE, R. Nunca houve outra Elis. In: Jornal do Commercio, Recife, 19 jan. 2012. Caderno C, p. 4.
  • ECHEVERRIA, R. Furacão Elis. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Globo, 1994.
  • FARIA, A. de; MENDES, T. Elis eterna. In. Gazeta de Alagoas, Maceió, 19 jan. 2012. Caderno B, p. B1.
  • GARCIA, L. L. Os dez anos em que o Brasil esqueceu Elis. In: Estado de São Paulo, São Paulo, 19 jan. 1992. Caderno 2, p. 1.
  • GIRON, L. A. Morte de Elis é mal lembrada dez anos depois. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 19 jan. 1992. Ilustrada, p. 5. 
  • IENSEN, J. Elis revive. In: Jornal de Santa Catarina, Blumenau, 19 jan. 2012. Lazer, p. 1,4 e 5. 
  • MAGIOLI, A. A voz inesquecível. In: Diario de Pernambuco, Recife, 29 fev. 2012. Viver, p. E6.
  • PRETO, M. Memória é reforçada com shows, discos e exposição. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 9 jan. 2012. Ilustrada, p. E1.
  • QUEIROZ, R. A voz que não morre. In: O Popular, Goiânia, 19 jan. 2012. Magazine, p.1.
  • SILVA, W. C. L. da. Biografias: construção e reconstrução da memória. In: Fronteiras - Revista de História, v. 11, n. 20, jul./dez. 2009. p. 151-66.   

sexta-feira, 30 de março de 2012

Perspectivas temporais para a doença

As doenças representam uma experiência privada e pública, ao mesmo tempo, por afetar o organismo do indivíduo, bem como a sociedade como um todo. A dimensão biológica, base da biomedicina, torna-se então insuficiente para compreender o significado da moléstia, sendo necessária também uma reflexão sobre a dimensão sociocultural, igualmente importante para o entendimento do que vem a ser doença. O campo jornalístico, arena à qual eu faço parte e me interesso em estudar, integra essa segunda dimensão, produzindo sentidos. Embora não seja a única instância, a mídia é sempre importante de ser considerada nos estudos sobre saúde.

Essa importância não vem de hoje. Há décadas, o poder público se vale dos meios de comunicação para divulgar as suas ações. A criação do Serviço de Propaganda e Educação Sanitária, em 1923, dentro do Departamento Nacional de Saúde Pública (o equivalente hoje ao Ministério da Saúde), é um exemplo dessa preocupação governamental quase secular em comunicar suas iniciativas para a população num espírito de "pedagogia civilizatória", segundo analisa a cientista social Janine Cardoso, numa entrevista à Revista Radis em dezembro de 2010 (http://www.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/100/reportagens/entrevista-janine-cardoso-%E2%80%9Cnovo-campo-tem-marca-do-processo-da-reforma) e no livro Comunicação e Saúde, escrito em parceria com a professora Inesita Soares de Araújo.

Nas últimas décadas, os meios de comunicação vêm adquirindo uma importância cada vez maior na produção de sentidos, contribuindo para tornar a doença uma experiência cada vez mais pública e para dar "vida" aos acontecimentos do passado e do presente, alçando-os à condição de históricos, como diz a pesquisadora Ana Paula Goulart Ribeiro, comunicóloga e historiadora de formação. Dos anos 80 para cá, enfermidades como a Aids, a dengue e a gripe A(H1N1) ganharam uma expressão forte nos media, tornando-se notícia.

Pensando no processo de agendamento, a mídia atuaria na seleção sob dois aspectos: tanto na escolha dos assuntos a serem publicizados quanto no enquadramento desses assuntos selecionados. Para falar sobre determinado tema, não seria possível falar de qualquer jeito, mas de determinado jeito, salientando alguns elementos específicos  na interpretação dos acontecimentos. Do ponto de vista imagético, por exemplo, a ideia que se tinha da Aids era dos doentes com condição física fragilizada, caminhando em direção à morte. Já com relação à gripe suína, a principal imagem que vem às nossas mentes através da imprensa são as pessoas usando máscara para evitar a contaminação pelo vírus.


A imagem dos doentes com máscaras foi bastante vista na pandemia da gripe A(H1N1)

A saliência conferida a determinados elementos de um assunto no trabalho jornalístico está presente na Análise do Discurso, já que os acontecimentos são enunciados a partir de um determinado viés. O jogo existente na definição dos diferentes enquadramentos das enfermidade revela como esses moldes são utilizados para interpretar a realidade, sendo importante para construção de uma concepção de doença, bem como para entendermos as estratégias adotadas pelos veículos de comunicação.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Nova estação

Ser como um rio que deflui
Silencioso dentro da noite
Não temer as trevas da noite
Se há estrelas nos céus, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens
Como o rio as nuvens são água
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidas tranquilas
[ O Rio, poema escrito por Manuel Bandeira ]


Mesmo que pareça o mais do mesmo, definitivamente não é. Talvez o aparentemente irrepreensível. Mas, no fundo, a erupção intranquilamente impossível. Como um rebento que brota das pedras, no seco sol. Novas voltas, outras novas que vêm de longe e de perto, bem dentro aqui. Reaparecer sangra lágrimas, gomos, salivas e seivas. Dói. Pulso vital. Sequências que se sucedem regularmente de forma irregular. Como partículas que atomizam o derradeiro instante para, em seguida, renascer primeiro. Blue gardenia.

Nessa insignificância irreal, o momento se revela fundamental para as germinações e para o curso das águas que derivam próximas e para aquelas que flutuam distantes e refletidamente caladas numa saída em beco que (ir)rompe o passado e o futuro, além de denotar singela e discretamente a reflexão calada. Afinal, a vida passa, como as águas do rio e do mar vão e voltam, numa aspiral que curiosamente se completa e se complementa com outras flutuações profundas. E assim vinhas. Simplesmente.



Recordo o passado inteiro
E as voltas que o mundo dá
Meu limão, meu limoeiro
Meu pé de jacarandá
[ Ciclo, canção composta por Caetano Veloso e gravada pela irmã Maria Bethânia no LP homônimo lançado em 1983 (Polygram-atual Universal Music) ]